Destaque

DE JOELHOS DIANTE DO OLIGARCA

por Luiz Carlos Azenha, no FB.

Bolsonaro e seu entorno de lobistas não perdem uma chance de se ajoelhar diante de um bilionário, sem pedir nada em troca — a não ser dinheiro de campanha, que não beneficia o povo.

Elon Musk quer fotografar toda a Amazônia com seus satélites de baixa órbita para revender a cartografia no mercado bilionário de imagens.

Não se deixem distrair pela história de que Musk está interessado na educação das crianças amazônidas.

É historieta para boi dormir.

Musk tem o potencial de se tornar o maior cliente de Alcântara, pois fará lançamentos em um ritmo tão grande — em 10 a 20 anos — que terá grande lucro usando a base brasileira localizada no Maranhão.

Com foguetes antigos, é possível economizar de 20 a 30% do combustível usando a base, por causa da proximidade com a linha do Equador. Sabe-se lá quanto será a economia com foguetes de nova geração — o Musk certamente é o primeiro a saber.

Lembram-se quando o FHC decidiu alugar a base aos Estados Unidos, que teriam direito de emitir crachás para frequência de brasileiros em território brasileiro?

Vai ser daí para pior.

Desde o aluguel fracassado, o Brasil sofreu um acidente misterioso e praticamente desistiu de desenvolver sua própria tecnologia, num movimento inversamente proporcional à crescente importância de Alcântara.

Isso me lembra da privatização da telefonia. Quando já se sabia que os microchips causariam a revolução da telefonia celular, foi justamente aí que o Brasil privatizou o conhecimento público que acumulara, tornando-se dependente das telefônicas estrangeiras.

Vivemos isso com a Vale, ao entregar a riqueza mineral de Carajás e, mais recentemente, com o pré-sal.

Os piratas não perdem uma!

Agora, no riquíssimo mercado das informações, comunicações e do turismo espacial (que na verdade é apenas uma cobertura para o transporte espacial de cargas), o Musk vem aí para dominar a colônia, em troca de uma miçanga.

E o “núcleo nacionalista do Exército”? Foi derrotado pela turma do Silvio Frota, hoje aboletada no governo Bolsonaro e muito mais preocupada com a manutenção de seus privilégios do que com a soberania nacional.

Até entregar a Amazônia eles topam, desde que seja para os oligarcas do Tio Sam.

Destaque

EU INVENTEI GILEAD. A SUPREMA CORTE ESTÁ TORNANDO ISSO REAL.

Achei que estava escrevendo ficção em The Handmaid’s Tale. Por Margaret Atwood

Nos primeiros anos da década de 1980, eu estava brincando com um romance que explorava um futuro em que os Estados Unidos estavam desunidos. Parte disso se transformou em uma ditadura teocrática baseada nos princípios religiosos puritanos da Nova Inglaterra e na jurisprudência do século XVII. Eu ambientei este romance dentro e ao redor da Universidade de Harvard — uma instituição que na década de 1980 era conhecida por seu liberalismo, mas que havia começado três séculos antes principalmente como uma faculdade de treinamento para o clero puritano.

Na teocracia fictícia de Gilead, as mulheres tinham muito poucos direitos, como na Nova Inglaterra do século XVII. A Bíblia foi escolhida a dedo, com as cerejas sendo interpretadas literalmente. Com base nos arranjos reprodutivos em Gênesis – especificamente, os da família de Jacó – as esposas dos patriarcas de alto escalão poderiam ter escravas, ou “escravas”, e essas esposas poderiam dizer a seus maridos que tivessem filhos pelas servas e depois reivindicar os filhos como seus.

Embora eu finalmente tenha completado este romance e o tenha chamado de The Handmaid’s Tale , parei de escrevê-lo várias vezes, porque o considerava muito forçado. Boba eu. As ditaduras teocráticas não estão apenas no passado distante: existem várias delas no planeta hoje. O que impede os Estados Unidos de se tornarem uma delas?

As mulheres foram deliberadamente excluídas da franquia. Embora um dos slogans da Guerra Revolucionária de 1776 fosse “Nenhum imposto sem representação”, e o governo por consentimento dos governados também fosse considerado uma coisa boa, as mulheres não deveriam ser representadas ou governadas por seu próprio consentimento – apenas por procurador, por meio de seus pais ou maridos. As mulheres não podiam consentir nem negar consentimento, porque não podiam votar. Isso permaneceu assim até 1920, quando a Décima Nona Emenda foi ratificada, uma emenda que muitos se opuseram fortemente por ser contra a Constituição original. Como era.

As mulheres foram não-pessoas na lei dos EUA por muito mais tempo do que têm sido pessoas. Se começarmos a derrubar a lei estabelecida usando as justificativas do ministro Samuel Alito, por que não revogar os votos para as mulheres?

Os direitos reprodutivos foram o foco da briga recente, mas apenas um lado da moeda ficou visível: o direito de se abster de dar à luz. O outro lado dessa moeda é o poder do Estado de impedir que você se reproduza. A decisão Buck v. Bell da Suprema Corte em 1927 considerou que o estado pode esterilizar as pessoas sem seu consentimento. Embora a decisão tenha sido anulada por casos subsequentes, e as leis estaduais que permitiam a esterilização em larga escala tenham sido revogadas, Buck v. Bell ainda está nos livros. Esse tipo de pensamento eugenista já foi considerado “progressista”, e cerca de 70.000 esterilizações – de homens e mulheres, mas principalmente de mulheres – ocorreram nos Estados Unidos. Assim, uma tradição “profundamente enraizada” é que os órgãos reprodutivos das mulheres não pertencem às mulheres que os possuem. Pertencem apenas ao Estado.

Espere, você diz: não é sobre os órgãos; é sobre os bebês. O que levanta algumas questões. Uma bolota é um carvalho? Ovo de galinha é galinha? Quando um óvulo humano fertilizado se torna um ser humano completo ou pessoa? “Nossas” tradições – digamos, as dos antigos gregos, os romanos, os primeiros cristãos – vacilaram nesse assunto. Na “concepção”? No “batimento do coração”? Em “acelerando?” A linha dura dos ativistas anti-aborto de hoje está na “concepção”, que agora deveria ser o momento em que um aglomerado de células ganha “alma”. Mas tal julgamento depende de uma crença religiosa – ou seja, a crença nas almas. Nem todos compartilham essa crença. Mas todos, ao que parece, agora correm o risco de serem submetidos a leis formuladas por aqueles que o fazem. Aquilo que é pecado dentro de um certo conjunto de crenças religiosas deve se tornar um crime para todos.

Vejamos a Primeira Emenda. Nele se lê: “O Congresso não fará nenhuma lei a respeito do estabelecimento de uma religião, ou proibindo seu livre exercício; ou cerceando a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito do povo de se reunir pacificamente e de solicitar ao Governo a reparação de queixas”. Os escritores da Constituição, estando bem cientes das guerras religiosas assassinas que haviam dilacerado a Europa desde o surgimento do protestantismo, desejavam evitar essa armadilha mortal. Não deveria haver religião estatal. Ninguém deveria ser impedido pelo Estado de praticar a religião de sua escolha.

A opinião do Alito pretende ser baseada na Constituição da América. Mas se baseia na jurisprudência inglesa do século XVII, época em que a crença na feitiçaria causava a morte de muitas pessoas inocentes. Os julgamentos de feitiçaria de Salem eram julgamentos – eles tinham juízes e júris – mas eles aceitavam “evidências espectrais”, na crença de que uma bruxa poderia enviar seu duplo, ou espectro, ao mundo para fazer travessuras. Assim, se você estava dormindo profundamente na cama, com muitas testemunhas, mas alguém relatou que você supostamente estava fazendo coisas sinistras a uma vaca a vários quilômetros de distância, você era culpado de feitiçaria. Você não tinha como provar o contrário.

Da mesma forma, será muito difícil refutar uma falsa acusação de aborto. O simples fato de um aborto espontâneo, ou uma reclamação de um ex-parceiro descontente, facilmente o marcará como um assassino. Acusações de vingança e despeito vão proliferar, assim como as acusações de feitiçaria há 500 anos.

Se o juiz Alito quer que você seja governado pelas leis do século 17, você deveria dar uma olhada nesse século. É quando você quer viver?

Sobre a autora: Margaret Atwood é uma poetisa canadense, contista e autora de mais de uma dúzia de romances.

Texto original: https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2022/05/supreme-court-roe-handmaids-tale-abortion-margaret-atwood/629833/

A crise financeira e o reset para as maiorias

Capitalismo depara-se com imenso tsunami de dívidas e não poderá superá-lo sem mudanças profundas. Elas podem ser de dois tipos: ou controle financeiro e social inédito sobre as sociedades, ou revisão geral das relações de moeda e crédito

Por Ellen Brown, no ScheerPost  | Tradução: Vitor Costa

Na antiga Mesopotâmia, chama-se de “Jubileu”. Quando as dívidas cresciam demais para serem pagas, os registros eram apagados. As dívidas eram perdoadas, as prisões dos devedores eram abertas e os servos voltavam a trabalhar em suas terras. Isso podia ser feito porque o rei era o representante dos deuses que diziam possuir a terra e, portanto, era o credor a quem as dívidas eram devidas. A mesma política aparece no Livro do Levítico, embora não esteja claro até que ponto esse Jubileu bíblico foi implementado.

Esse tipo de perdão generalizado de dívidas não pode ser feito hoje, porque a maioria dos credores são privados. Os bancos, os proprietários de terras e os investidores em fundos de pensão iriam à falência se seus direitos de reembolso fossem simplesmente eliminados. Mas temos um sério problema de dívida, que é em grande parte estrutural. Os governos delegaram o poder de criar dinheiro aos bancos privados, que criaram a maior parte da oferta monetária circulante como dívida com juros. Estes bancos criam a moeda dos empréstimos, mas não os juros. Por isso, mais dinheiro deve ser pago do que aquele que foi criado no empréstimo original. A dívida cresce mais rápido do que a oferta de dinheiro, como pode ser visto no gráfico abaixo. A dívida cresce até que não possa mais ser paga. Então, o registro é “limpo” por meio de alguma forma de quebra de mercado, como a crise financeira de 2008, geralmente aumentando a desigualdade de renda.

Hoje, o remédio para um acúmulo insustentável de dívida tem sido chamado de “reset”. Diferentemente do Jubileu, essas redefinições são necessárias após algumas décadas. A aceitação de uma moeda é baseada na confiança. Um “reset” altera a base de apoio desta moeda para restaurar a confiança, quando esta entra em colapso. No século XX, grandes redefinições de moeda ocorreram em 1913, quando o banco central dos EUA [Federal Reserve ] foi instituído após uma grande crise bancária; em 1933, após outra crise bancária catastrófica, quando o dólar foi desvinculado do padrão-ouro internamente e os depósitos foram garantidos pelo governo federal; em 1944, na Conferência de Bretton Woods, no ocaso da Segunda Guerra Mundial, quando o dólar americano lastreado em ouro tornou-se a moeda de reserva para o comércio global; e em 1974, quando os EUA finalizaram um acordo com os países da OPEP para que vendessem seu petróleo apenas em dólares, efetivamente escorando o dólar no petróleo, depois que Richard Nixon desatrelou o dólar do padrão-ouro em 1971. As manipulações do banco central também são uma forma de reset, destinadas a restaurar a fé na moeda ou nos bancos. Por exemplo, quando o presidente do Federal Reserve, Paul Volcker, elevou a taxa de juros dos títulos federais para 20% em 1980, e quando o FED resgatou os bancos de Wall Street após a grande crise financeira de 2008-09 com flexibilização quantitativa.

Mas essa flexibilização quantitativa não corrigiu o acúmulo da dívidas, que novamente atingiu níveis insustentáveis. De acordo com a Truth in Accounting , em março de 2022, o governo dos EUA acumulou uma dívida de US$ 133,38 trilhões, incluindo compromissos não financiados de Seguro Social e Medicare. Alguns países estão em situação ainda pior. O ex-banqueiro de investimentos Leslie Manookian declarou sob juramento que os países europeus têm 44 trilhões de euros em aposentadorias não financiadas, e não há fundos para cumprir essas obrigações. Praticamente não há mercado de títulos europeu, devido às taxas de juros negativas. A única alternativa é a inadimplência. A preocupação é que, quando as pessoas perceberem que os sistemas de previdência social e previdenciária que pagaram por toda a sua vida profissional estão falidos, elas irão às ruas e o caos se estabelecerá.

Daí a necessidade de outro reset. Os credores privados, no entanto, querem uma redefinição que os deixe no controle. Hoje, um novo tipo de redefinição preocupa muito, porque iria muito além de restaurar a estabilidade da moeda. Esse “Great Reset” promovido pelo Fórum Econômico Mundial condenaria o mundo a uma forma de feudalismo tecnocrático.

O Fórum Econômico Mundial é um grupo de empresários, políticos e acadêmicos de elite que se reúne em Davos, na Suíça, todo mês de janeiro. O “Great Reset” foi o tema de sua Cúpula (virtual) de 2021, baseada em um livro de julho de 2020 intitulado “Covid-19: The Great Reset”, de coautoria do fundador do Fórum, Klaus Schwab. Algumas das propostas do Fórum estão resumidas em um vídeo em seu site intitulado “Oito Previsões para o Mundo em 2030”. A primeira previsão é: “Você não possuirá nada. E você será feliz. O que você quiser, você vai alugar. E será entregue por drone.”

A proposta de Schwab redefiniria mais do que a moeda. Em uma reunião virtual em junho de 2020, ele disse: “Precisamos de um ‘Great Reset’ do capitalismo”. Mas, como observa o apresentador de talk show Kim Iversen, a solução proposta é mais capitalismo com um novo nome: “stakeholder capitalism”, onde só as corporações e seus acionistas possuirão propriedades. Cada cidadão terá uma conta no banco central e um ID digital federal obrigatório. Receberá um benefício social na forma de uma renda básica minimamente adequada – desde que mantenha uma pontuação de “crédito social” condizente. Sua moeda digital do banco central será “programável” – racionada, controlada e cancelada se o detentor sair da linha ou discordar da narrativa oficial. Os cidadãos serão mantidos felizes com games e drogas.

Segundo professor Yuval Harari, conferencista e autor no WEF, “a Covid é crítica, porque ela convence as pessoas a aceitar, a legitimar a vigilância biométrica total…. Não precisamos apenas monitorar as pessoas, precisamos monitorar o que está acontecendo sob a pele.”

Harari está ciente dos perigos das ditaduras digitais. Ele disse em uma apresentação antes da pandemia em Davos em janeiro de 2020:

Em Davos, ouvimos muito sobre as enormes promessas da tecnologia – e essas promessas são certamente reais. Mas a tecnologia também pode perturbar a sociedade humana e o próprio significado da vida de várias maneiras, desde a criação de uma classe global inútil até a ascensão do colonialismo de dados e das ditaduras digitais.

Nós, humanos, devemos nos acostumar com a ideia de que não somos mais almas misteriosas – agora somos animais hackeáveis. … [Se] esse poder cair nas mãos de um Stalin do século XXI, o resultado será o pior regime totalitário da história humana…

Em um futuro não tão distante, … os algoritmos podem nos dizer onde trabalhar e com quem nos casar, e também decidir se nos contratarão para um emprego, se nos concederão um empréstimo e se o banco central deve aumentar a taxa de juros ….

Qual será o sentido da vida humana, quando a maioria das decisões forem tomadas por algoritmos?

A demolição econômica controlada

Antes que o jogo possa ser resetado, o tabuleiro deve ser limpo. O que faria as sociedades abrirem mão de sua propriedade privada, sobreviverem com uma renda básica mínima e submeterem-se a uma vigilância constante, interna e externa?

A pandemia global e os lockdowns que se seguiram contribuíram muito para chegar a este ponto. Os lockdowns não apenas eliminaram as empresas menores, mas também aumentaram as dívidas dos pequenos países, forçando-os a aumentar seus empréstimos do Fundo Monetário Internacional. O FMI é notório pelos seus empréstimos onerosos, que impõem medidas estritas de austeridade e a renúncia ao controle dos recursos naturais.

Em um artigo de junho de 2020, publicado no blog do FMI e intitulado “Do grande lockdown à grande transformação”, a diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva, chamou a resposta política global à crise de 2020 de “Grande Lockdown”. Vejamos sua fala à Câmara de Comércio dos EUA:

Chamamos o período atual de “o Grande Lockdown” porque estamos lutando contra uma emergência de saúde que paralisa a produção e o consumo.

Em março daquele ano, cerca de cem bilhões de dólares deixaram os mercados emergentes e os países em desenvolvimento – três vezes mais do que durante a crise financeira global.

Mas em abril e maio — graças a uma injeção maciça de liquidez nas economias avançadas — alguns mercados emergentes puderam voltar ao mercado e emitir títulos com rendimentos competitivos, com emissão total de cerca de 77 bilhões de dólares. Isso foi quase três vezes e meia mais do que nos mesmos dois meses do ano anterior.

Em outras palavras, ao paralisar a produção e o consumo, o “Grande Lockdown” já havia conseguido, em junho de 2020, conseguido retirar dos mercados emergentes US$ 100 bilhões em ativos adicionais e atrela estes países a US$ 77 bilhões em novas dívidas.

Isso ajuda a explicar por que tantos países concordaram com o “Grande Lockdown” tão rapidamente, mesmo quando alguns sofreram poucas mortes por Covid-19. Esse confinamento era aparentemente uma “condicionalidade” necessária para obter um empréstimo do FMI. Pelo menos isso foi verdade para Belarus, que rejeitou a oferta. Como disse o seu presidente:

Pediram-nos para espelhar nossa resposta ao coronavírus à da Itália. Não quero que a situação italiana se repita em Belarus. Temos nosso próprio país e nossa própria situação. O FMI continua exigindo de nós medidas de quarentena, isolamento, toque de recolher. Isso não faz sentido. Não vamos dançar ao som de ninguém.

Ao contrário de Belarus, a maioria dos países concordou com as restrições, assim como as famílias e empresas presas na armadilha da dívida por uma economia em que a produção e o consumo foram paralisados. Como a maioria das economias emergentes, eles concordaram com quaisquer termos impostos para retornar ao “normal”.

Os lockdowns já foram suspensos na maioria dos países, mas a armadilha da dívida está prestes a ser acionada. A moratória sobre os aluguéis e a sobre a dívida estudantil dos EUA está chegando ao fim, e os atrasos acumulados precisam ser pagos. Os devedores incapazes de arcar com esse ônus poderiam ficar na rua, juntando-se à “classe inútil” descrita pelo Prof. Harari. Eles podem ser forçados a aceitar o feudalismo tecnocrático do Fórum Econômico Mundial, o Great Reset, mas esse não é o tipo de futuro que a maioria das pessoas deseja. Quais são as alternativas?

Um Jubileu Eurasiano?

Para a dívida soberana (a dívida dos governos nacionais), uma forma de jubileu é a imaginada por Sergei Glazyev, em conjunto com o sistema monetário alternativo que está sendo projetado pela União Econômica da Eurásia (EAEU), detalhado em meu último artigo. Glazyev é o ministro da Integração e Macroeconomia da Comissão Econômica da Eurásia, o órgão regulador da EAEU. Um artigo publicado por ele no The Cradle, intitula-se “Sergey Glazyev apresenta o novo sistema financeiro global”.

O novo sistema monetário mundial, sustentado por uma moeda digital, será apoiado por um conjunto de novas moedas internacionais e recursos naturais. E libertará o Sul Global da dívida ocidental e da austeridade induzida pelo FMI.

O artigo cita Glazyev, que afirma:

A transição para a nova ordem econômica mundial provavelmente será acompanhada pela recusa sistemática de honrar obrigações em dólares, euros, libras e ienes. Nesse sentido, não será diferente do exemplo dado pelos países emissores dessas moedas, que julgaram apropriado roubar reservas cambiais do Iraque, Irã, Venezuela, Afeganistão e Rússia na ordem de trilhões de dólares. Uma vez que os EUA, a Grã-Bretanha, a UE e o Japão se recusaram a honrar suas obrigações e confiscaram riquezas de outras nações que eram mantidas em suas moedas, por que outros países deveriam ser obrigados a pagá-los de volta e honrar seus empréstimos?

Em qualquer caso, a participação no novo sistema econômico não será restringida pelas obrigações do antigo. Os países do Sul Global podem ser participantes plenos do novo sistema, independentemente de suas dívidas acumuladas em dólares, euros, libras e ienes. Mesmo que eles não cumpram suas obrigações nessas moedas, isso não afetará sua classificação de crédito no novo sistema financeiro. A nacionalização da indústria extrativa, da mesma forma, não causará disrupção. Além disso, caso esses países reservem parte de seus recursos naturais para o suporte do novo sistema econômico, seu respectivo peso na cesta de moedas da nova unidade monetária aumentará na mesma proporção, proporcionando a essas nações maiores reservas de moeda e capacidade de crédito.

Isso pode eliminar em grande parte o excesso de dívida soberana nos países membros da EAEU. Mas o que acontecerá com os Estados Unidos e outros países ocidentais, que provavelmente não aderirão? Algumas possibilidades inovadoras serão abordadas na segunda parte deste texto.

Fonte do texto: https://outraspalavras.net/alemdamercadoria/a-crise-financeira-e-o-reset-para-as-maiorias/ (Outras Palavras)

Tudo começou na ilha de Robinson

Em 1719, o escritor Daniel Defoe criou o personagem Robinson Crusoé, viajante, que naufraga em uma ilha na Venezuela. Para o economista Stephen Hymer, a vida que se compõe então – caça, agricultura e a submissão do nativo – constitui uma perfeita alegoria que funda o modo de produção capitalista: a acumulação primitiva

O personagem solitário Robinson Crusoé frequentemente inspira os economistas por sua força, eficiência, inteligência e frugalidade; ele encarnaria a capacidade da espécie humana de dominar a natureza. A epopeia contada por Daniel Defoe é, no entanto, igualmente uma história de conquista, escravidão, exploração e assassinato. Em suma, da lei do mais forte. Que esse aspecto do romance seja geralmente ocultado não deveria nos surpreender, já que, como observava Karl Marx, “nos manuais sagrados da economia política, é o idílio […] que sempre reinou”.1 Entre o Robinson Crusoé amado pelos economistas e o do livro há um abismo tão largo quanto entre a livre troca embelezada pelos manuais de economia e sua realidade factual.

A teoria liberal da livre troca repousa sobre o modelo do caçador e do pescador que trocam mutuamente os frutos de seu trabalho, numa ligação espontânea de igualdade, reciprocidade e liberdade. Mas o comércio internacional – ou inter-regional – acontece mais frequentemente numa relação de subordinação e sob condições que são tudo menos pacíficas; é o comércio entre a metrópole e o interior, o colonizador e o colonizado, o mestre e o empregado. Assim como o capital precisa do trabalho para prosperar, o comércio repousa sobre uma divisão bem-ordenada das funções: a uns, a concepção, o planejamento, a organização e o lucro; aos outros, o trabalho. É por ser intrinsecamente desigual em sua estrutura e na divisão de seus lucros que ele se instaura e se mantém pela violência, seja social (a pobreza), simbólica (a socialização obrigada) ou física (a guerra).

 Acumulação primitiva

O processo de acumulação capitalista nasce do encontro de duas categorias de pessoas: de um lado, os detentores do dinheiro, desejosos de aumentar seu capital comprando de outrem sua força de trabalho; de outro, os que têm apenas sua força de trabalho. Uma vez em andamento, o capitalismo mantém essa separação e a reproduz em uma escala cada vez mais vasta. Mas, antes de ficar de pé, ele precisa primeiro tomar forma e, então, passar por um período de acumulação primitiva.

Na última parte do primeiro volume de O capital, Marx analisa o processo histórico que conduziu à concentração dos meios de produção nas mãos do capital e seu controle sobre os trabalhadores. Ele mostra como o trabalho assalariado se propagou progressivamente, pela expropriação das populações agrícolas, e explica em parte a gênese do capitalismo industrial pela pilhagem da África, da Ásia e da América na “aurora rósea da era capitalista”.

Em Robinson Crusoé, Defoe ilustra esse acontecimento através do personagem de um inglês do século XVII que reúne capital graças ao suor daqueles que trabalham em sua plantação de cana-de-açúcar no Brasil, inicialmente, e em sua ilha caribenha, em seguida. Claro, o sistema estabelecido por Robinson não é uma economia de mercado tal como a que surgirá mais tarde na Inglaterra, mas uma economia agrícola e colonial como era praticada pelos primeiros capitalistas no mundo não europeu. Nesse sentido, a história de Robinson é também a do subdesenvolvimento primitivo.

Do personagem, guardamos o mito do sobrevivente engenhoso que só podia contar consigo mesmo para sobreviver, ao passo que, no romance, ele aparece, ao contrário, como estreitamente dependente de um grupo mais amplo. Mesmo depois do naufrágio, Robinson continua tributário da ajuda e da cooperação de outrem. Sua aventura sublinha então a natureza profundamente social de toda produção. Nada de paradoxal nisso: a produção do indivíduo isolado se vincula ao capitalismo tanto quanto a do grupo de trabalhadores socialmente organizados.

 Poder sobre o outro

No fim do livro, Robinson acumulou mais riquezas do que ele sonhara possuir antes do naufrágio. À fortuna de sua plantação brasileira, cuidadosamente mantida e valorizada em sua ausência, são acrescentados os recursos abundantes que lhe fornece o sistema econômico que desenvolveu em “sua” ilha. Claro, ele sofreu um longo período de solidão, mas este, retrospectivamente, não parece mais insuportável do que a alienação capitalista sofrida por todos – tanto para os que trabalham por uma remuneração minúscula quanto para os que, como Robinson, acumulam mais e mais, sem nunca conseguir parar.

Durante seus anos de solidão, e desafiando a teoria econômica dominante, Robinson explorou a ilha para seu uso pessoal, não para a troca. Descobriu que não sofria penúria alguma, razão pela qual o trabalho perde pouco a pouco qualquer valor a seus olhos. A paixão pela acumulação, força motriz do capitalismo, desaparece. Por não ter ninguém para administrar e dominar, a ganância de Robinson cessa. Para Marx, é a mais-valia sobre o trabalhador que faz a prosperidade do capitalismo. Basta retirar sua mão de obra que seu sistema de valores afunda imediatamente. Sem a caça desenfreada à mais-valia, a economia de subsistência de Robinson se basta. Os critérios de eficiência, desempenho e acumulação se fundem em um sistema de valores mais amplo.

Mas assim que Robinson sai da solidão, seu desejo de controle e acumulação ressurge. É apenas enquanto explora sua própria força de trabalho que ele para de medir as coisas nesses termos. O dinheiro e o capital são relações sociais fundadas sobre o poder. Independentemente do que sentem os capitalistas quando contemplam seus estoques, é o poder sobre o outro que eles contam e acumulam – certamente se dariam conta disso se, como Robinson, ficassem sozinhos.

Por meio de seu personagem, Defoenão coloca em cena apenas a aventura de um herói naufragado por acidente em uma ilha deserta, mas também uma alegoria sobre a vida dos homens no regime capitalista: uma vida feita de solidão, privação, incerteza e medo.

Interiorização da subordinação

O isolamento de Robinson se revela mais persistente em sua mente do que na realidade. Com efeito, cada vez que se encontra na presença de um visitante, reage com inquietação e suspeita. Sua desconfiança instintiva ilustra perfeitamente a alienação do individualismo possessivo, que se concretiza atualmente pela multiplicação de condomínios fechados tão acolhedores quanto bunkers.

Robinson possui uma espingarda, mas não é pela força que ele convence Sexta-Feira a se tornar produtivo. Para que o servidor aceite sua posição de inferioridade, o mestre deve aprender a domá-lo. Robinson dispõe, para isso, de uma vantagem determinante, já que salvou a vida do companheiro; no entanto, deve operar com prudência, seguindo um programa com várias etapas, para que o nativo interiorize plenamente as ligações de subordinação tecidas por seu mestre e se comporte como subalterno consentido e “livre”.

Do dia em que Robinson descobre uma pegada na areia até seu encontro com Sexta-Feira, quase dez anos se passam. Dez anos de medo, ansiedade e vigilância, durante os quais nosso herói reduz consideravelmente suas atividades produtivas e mal ousa pôr um pé para fora de sua fortaleza. Quando Sexta-Feira enfim aparece em sua vida, Robinson pode novamente utilizar seu gênio industrial, empreender, construir, acumular. A narrativa não precisa se o personagem principal mantém uma contabilidade, masnão deixa nenhuma dúvida de que o trabalho, para ele, reencontrou seu pleno valor: objetivos são fixados, ordens são dadas, resultados são esperados. Robinson designa a Sexta-Feira todo tipo de tarefas, explica-lhe como fazê-las, ensina-o, encoraja-o, repreende-o, explica novamente etc. Graças a seu servidor, ele se torna novamente um Homo economicus. Para Sexta-Feira, o trabalho; para Robinson, o capital, quer dizer, a inovação, a organização e a constituição de um império.

Ordem autorreprodutora

O período de acumulação primitiva se encerra. Robinson está, a partir de então, na chefia de uma grande propriedade, adquirida não graças à qualidade do trabalho realizado no passado, mas à sua posse afortunada de armas de fogo. Apesar de todo o sangue derramado pela constituição de seu capital, este não é objeto de nenhuma contestação. Sexta-Feira trabalhou duramente, nunca se entregou à preguiça e àdevassidão e, no entanto, no fim de sua labuta, não possui nada. Enquanto Robinson goza na ociosidade de uma fortuna que continua crescendo inexoravelmente, seu servidor permanece tão pobre quanto antes.

Pouco a pouco, outros personagens desembarcam na ilha. Com oportunismo, o mestre dos territórios tira vantagem de seu monopólio sobre os meios de produção insulares para ditar sua lei aos recém-chegados. Evidentemente, à medida que seu império se estende, os problemas que encontra se tornam mais espinhosos, mas Robinson não carece de recursos para vencê-los; usa cada vez mais o terror, a religião e a inviolabilidade das fronteiras ou do princípio de delegação da autoridade real para consolidar sua posição e exercer uma ordem autorreprodutora.

A alegoria de Robinson Crusoé nos ensina mais sobre a economia, sua história e sua teoria do que os contos infantis recitados pela maior parte dos economistas modernos. Sua obsessão pelo mercado e pelos preços permite sem dúvida avaliar o valor dos hábitos do herói em função do volume de canas-de-açúcar colhidas em sua plantação brasileira, mas ela não nos informa nada sobre a relação de Robinson e Sexta-Feira. Para compreender como o capital se constitui e se exerce, é preferível deixar a esfera barulhenta do mercado, onde tudo acontece na superfície, e mergulhar nas profundezas ocultas do mundo da empresa.

O capitalista pintado por Defoe naufraga em uma ilha deserta situada fora do mercado, mas não fora do mundo. Uma ilha onde o capital aparece em sua nudez original: imposto pela força e pela ilusão, aumentado graças ao trabalho de outrem. A certidão de nascimento do capital de Robinson não é tão sangrenta quanto a das grandes fortunas mercantis, mas sua natureza coercitiva não é menos espetacular.

BOX:

Ajudar os franceses a amar a empresa

O CNPF [Conselho Nacional do Patronato Francês] foi fundado em 1945 […] depois de longas negociações iniciadas pelo Estado e em uma configuração política majoritariamente hostil ao patronato (durante os anos 1940-1944). […] [Politicamente] o CNPF existiu durante muito tempo apenas para e sob a tutela da UIMM [União das Indústrias e Profissões da Metalurgia]. […] No entanto, outras federações tentaram equilibrar essa preponderância: os setores têxtil, de construção civil e químico e, principalmente, o bancário e de seguros, que investem muito na organização desde os anos 1980. O peso dos serviços na entidade era, no entanto, muito baixo até sua transformação em Medef [Movimento das Empresas da França, em 1988]. […] [Na época], a razão social, presente no nome coletivo, indicava uma mutação: tratava-se de um “movimento”, e não mais de um “conselho”. Aquilo que é representado não é mais o patronato (vocábulo banido dos estatutos) – termo utilizado depois das greves de 1936 e recolocado em pauta depois das de 1968 –, mas as empresas.

[…] Isso também se refletiu em uma doutrina de investimento, inicialmente produzida por Denis Kessler [primeiro vice-presidente do Medef] e François Ewald (filósofo, antigo assistente de Michel Foucault e diretor de pesquisa na FFSA [Federação Francesa das Empresas de Seguros]), que pretendiam escapar da luta de classes pensando em termos de sociedade de risco e promover a “sociedade civil” (empresas e parceiros sociais) contra o Estado. […] A eleição [em 2005] de Laurence Parisot foi resultado de uma coalizão de empresas de serviços e de algumas federações industriais contra a UIMM […]. De setembro de 2007 a abril de 2008, a presidente do Medef jogou todo o peso no registro da comunicação (Joana d’Arc contra o Politburo, patronato do século XXI contra os mestres das forjas, modernidade contra arcaísmo, organização da “sociedade civil” versusescritório de corrupção política) e deu início a um processo de reestruturação da organização que ela pretende, nonível da cúpula, fazer funcionar como uma empresa.

 Fonte: Jean-Claude Daumas (org.),Dictionnaire historique des patrons français(Dicionário histórico dos patrões franceses), Flammarion, Paris, 2010.

Esse texto é uma versão abreviada de um artigo publicado pela Monthly Review em dezembro de 1971

1          Karl Marx, Le capital[O capital], Éditions Sociales, Paris, 1976.

Fonte: https://diplomatique.org.br/tudo-comecou-na-ilha-de-robinson/

E se nos livrássemos de todos os bilionários?

É ético que existam, quando tantos passam fome? Sua presença implica deformações econômicas, políticas e sociais. Sua adulação pela mídia é aberração moral. Ao nos livrarmos deles, daremos um enorme passo civilizatório

Por Farhad Manjoo | Tradução: Marianna Braghini | Imagem: Colleen Kong-Savage

No último outono, Tom Scocca, editor do blog essencial Hmm Daily, escreveu um pequeno post que está mexendo com minha cabeça desde então.

“Algumas ideias de como tornar o mundo melhor, requerem um pensamento cuidadoso e com nuances, sobre como melhor equilibrar interesses comflitantes,” ele começou. “Outras, não: Bilionários são ruins. Nós devemos nos livrar deles preventivamente. De todos eles.”

Scocca — escritor por muito tempo no Gawker, até que o site foi abafado por um bilionário — ofereceu um argumento direto para dar um tranco nos mais ricos. Um bilhão de dólares é muito mais do que alguém precisa, mesmo fazendo os maiores excessos da vida. É muito mais do que aquilo a que qualquer um poderia alegar ter direito, não importa o quanto acredite ter contribuído com a sociedade.

Em algum nível de riqueza extrema, o dinheiro inevitavelmente corrompe. Na esquerda e na direita, ele compra poder político, silencia dissidências, serve principalmente para perpetuar uma riqueza cada vez maior, frequentemente sem relação com qualquer bem social recíproco. Para Scocca, esse nível é evidentemente algo em torno de um bilhão de dólares; com mais do que isso, você é irredimível.

Escrevo sobre tecnologia. Muito de minha carreira exigiu uma pesquisa profundamente antropológica entre o reino dos bilionários. Mas estou envergonhado em dizer que nunca tinha considerado a ideia de Scocca — que se almejarmos, por meio de políticas públicas e sociais, simplesmente desencorajar as pessoas de possuir mais de um bilhão, estaremos construindo um mundo melhor.

Devo dizer que, em outubro, abolir bilionários me pareceu fora de lugar. Soava radical, impossível, e mesmo Scocca pareceu sugerir esta noção como um mero devaneio.

Mas o fato de esta ideia ter se tornado um tema central da esquerda democrática revela, paradoxalmente, a fragilidade política dos bilionários. Nos Estados Unidos, Bernie Sanders e Elizabeth Warren estão propondo novos impostos voltados aos super ricos — incluindo taxas especiais para bilionários. A deputada Alexandria Ocasio-Cortez, que também é a favor de impostos mais altos sobre os ricos, tem feito um caso moral contra a existência de bilionários. Dan Riffle, seu assessor político, recentemente mudou seu nome no Twitter para “Todo Bilionário É Uma Falha Política.” Semana passada, o Huffpost perguntou, “Bilionários deveriam existir?

Suspeito que se a questão está recebendo tanta atenção, é porque tem uma resposta óbvia: Não: bilionários não deveriam existir — com seu poder de engolir o mundo, conquistando esse nível de adulação, enquanto o resto da economia se debate para sobreviver.

Abolir bilionários pode não parecer como uma ideia prática, mas se você pensar na proposta como um objetivo a longo prazo, à luz dos desarranjos econômicos mais profundas de hoje em dia, pode ser tudo — menos radical. Banir bilionários — buscando cortar seu poder econômico, trabalhar para reduzir seu poder político e tentar questionar seu status social — é uma visão perfeitamente clara para sobreviver ao futuro digital.

A abolição de bilionários poderia tomar diversas formas. Poderia significar evitar que as pessoas tenham mais de um bilhão em cash, mas provavelmente significaria maiores impostos sobre rendimentos, riqueza e propriedades para bilionários e pessoas a caminho de se converterem nisso. Essas ideias de políticas revelaram-se muito populares ainda que provavelmente não sejam suficientemente redistributivas para converter a maior parte dos bilionários em sub-bilionários.

Mais importante, o objetivo de abolir bilionários iria envolver remodelar estrutura da economia contemporânea, para que produza uma proporção mais igualitária entre os super ricos e restante de nós.

A desigualdade está definindo a condição econômica da era tecnológica. O software, por sua própria natureza, leva a concentrações de riqueza. Por meio dos efeitos em rede, em que a própria popularidade de um serviço assegura que ele se torne cada vez mais popular; e de economias de escala sem precedentes — em que a Amazon pode fazer a assistente digital Alexa uma única vez e vê-la trabalhar em todos os lugares, para todo mundo — a tecnologia instila uma dinâmica de o-vencedor-leva-tudo em grande parte da economia.

Alguns destes efeitos já começaram a aparecer. Corporações muito famosas, muitas de tecnologia, são responsáveis pelo grosso dos lucros corporativos, enquanto a maior parte do crescimento econômico, desde os anos 1970, foi para um pequeno número de super-ricos.

Mas o problema está prestes a piorar. A Inteligência Artificial está criando novas indústrias muito prósperas, que não empregam muitos trabalhadores. Se forem deixadas sem controle, tecnologia criará um mundo em que alguns bilionários controlarão uma parcela sem precedentes da riqueza global.

Mas a abolição não envolve apenas política econômica. Pode também tomar a forma de vexame social e político. Há pelo menos vinte anos vivemos uma relação amorosa devastadora com os bilionários – um flerte em que o setor tecnológico avançou mais do que em qualquer outro.

Assisti a uma geração de esforçados empreendedores juntarem-se ao clube das três pontos [termo utilizado para definir bilionários] e instantaneamente transformarem-se em super heróis da ordem global, pelo que se considera ser sua sabedoria óbvia e irrefutável sobre qualquer coisa e todas as coisas. Colocamos bilionários em capas de revistas, especulamos sobre suas ambições políticas, saudamos suas grandes visões para salvar o mundo e piscamos afetuosamente aos seus planos malucos para nos ajudar a escapar — graças aos seus foguetes gigantes e de-forma-alguma-sugestivos-freudianamente — para um novo mundo

Mas a adulação que concentramos nos bilionários obscurece o dilema moral no centro de sua riqueza. Por que qualquer pessoa deveria ter um bilhão de dólares e sentir-se orgulhosa em exibir seus bilhões, enquanto há tanto sofrimento no mundo? É como Alejandria Ocasio-Cortez disse, num diálogo com Ta-Nehisi Coates: “Não afirmo que Bill Gates ou Warren Buffet sejam imorais, mas um sistema quye permite a existência de bilionários, quando há muitas partes do mundo em que as pessoas estão se enchendo de verminoses porque não há acesso à Saúde pública está doente”.

Na semana passada, para ir mais fundo na questão de se é possível ser um bom bilionário, eu falei com dois especialistas.

O primeiro foi Peter Singer, o filósofo da moral, de Princeton, que escreveu extensivamente sobre os deveres éticos dos ricos. O Singer me disse que em geral, ele não achava possível viver moralmente como bilionário, apesar de apontar algumas exceções: Bill Gates e Warren Buffet, que se decidiram doar a maior parte de suas riquezas para a filantropia, não teriam o desprezo de Singer.

“Eu tenho uma preocupação moral com os indivíduos – nós temos tantos bilionários que não estão vivendo eticamente, e não estão fazendo o melhor que podem, por uma larga margem,” disse o Sr. Singer.

Além disso, há a complicação adicional se, de fato, mesmo aqueles que estão “fazendo o bem” estão mesmo fazendo o bem. Como argumentou Anand Giridharadas, muitos bilionários aproximam-se da filantropia como uma espécie de exercício de marca, para manter um sistema no qual conseguem manter seus bilhões.

Quando um bilionário se compromete a colocar dinheiro na política — seja para o seu lado ou o outro — você deveria enxergar melhor de que se trata: um esforço para ganhar vantagens sobre o sistema político, um esquema para causar um curto-circuito na revolução e mitigar a revolta.

O que me leva ao meu segundo especialista no assunto, Tom Steyer, o antigo investidor de fundos multimercados, que está dedicando sua fortuna de bilhões de dólares para uma onda de causas progressistas, como registro de eleitores, mudanças climáticas e o impeachment de Donald Trump.

Steyer preenche todos os requisitos de um liberal. Ele é a favor de um imposto sobre fortunas e ele e sua esposa assinaram a Giving Pledge. Ele não vive em luco excessivo — ele dirige um Chevrolet Volt. Ainda assim, eu me perguntei quando conversei ao telefone com, semana passada: Não estaríamos melhor se não tivéssemos que nos preocupar com pessoas ricas como ele tentando alterar o processo político? Steyer foi afável e eloquente; ele falou comigo durante quase uma hora sobre seu interesse em justiça econômica e suas crenças em organizações de base. Em determinado ponto, comparei suas doações com as dos Irmãos Koch, e ele pareceu genuinamente aflito com comparação. 

“Eu compreendo os problemas reais do dinheiro na política,” disse. “Nós temos um sistema que sei que não é certo, mas é o sistema que temos, e nós estamos tentando o máximo possível para mudá-lo.”

Eu admiro seu zelo. Mas se nós tolerarmos os supostamente “bons” bilionários na política, inevitavelmente deixamos as portas abertas para os ruins. E eles nos ultrapassarão. Quando o capitalismo norte americano nos envia seus bilionários, não está enviando os melhores. Está nos enviando pessoas que tem muitos problemas, e elas trazem esses problemas com elas.

Elas estão trazendo desigualdade e injustiça. Elas estão comprando políticos.

E alguns, creio eu, são boas pessoas.

Fonte: Outras Palavras

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Haverá vida além do PIB?

Cada vez mais pensadores – inclusive economistas – consideram que o velho indicador de “riquezas” mede apenas dinheiro (e oculta desigualdade, devastação e alienação). Mas… há alternativas? Roteiro para um debate indispensável

Por Ladislau Dowbor | Imagem: Banksy

Crescer por crescer é a filosofia da célula cancerosa.

O objetivo da economia, o cuidado com a nossa casa, consiste essencialmente em assegurar o bem-estar das famílias sem prejudicar as gerações futuras. Isso exige inteligência no uso dos recursos que, por sua vez, exige formas adequadas e transparentes de fazer as contas. O PIB, como todos devem saber, é o produto interno bruto. Para o comum dos mortais, que não faz contas macroeconômicas, trata-se da diferença entre aparecerem novas oportunidades de emprego (PIB em alta) ou ameaças de desemprego (PIB em baixa). Para o governo, é a diferença entre ganhar uma eleição e perdê-la: não à toa o governo britânico acrescentou ao PIB as estimativas do comércio de drogas e da prostituição, para poder dizer que “estamos crescendo”. Para os jornalistas, é uma ótima oportunidade de dar a impressão de que entendem do que se trata, mas reduzir a questão do desenvolvimento a uma cifra escancara a porta para “interpretações”. Para os que se preocupam com a destruição do meio-ambiente, é uma causa de desespero, já que a nossa principal conta esqueceu este detalhe. Para o economista que assina o presente artigo, é uma oportunidade para desancar o que é uma contabilidade clamorosamente deformada, e apresentar algo que funcione.

Peguemos o exemplo de uma alternativa contábil chamada FIB. Trata-se simplesmente de um jogo de siglas, Felicidade Interna Bruta. Tem gente que prefere felicidade interna líquida, questão de gosto. O essencial é que inúmeras pessoas no mundo e técnicos de primeira linha, nacional e internacional, estão cansados de ver o comportamento econômico ser calculado sem levar em conta – ou muito parcialmente – os interesses da população e a sustentabilidade ambiental. Como é possível dizer que a economia vai bem, ainda que o povo vá mal? Então a economia serve para quê?

No Brasil a discussão entrou com força ainda nos anos 1990 a partir do cálculo do IDH (Indicadores de Desenvolvimento Humano), que inclui, além do PIB, a avaliação da expectativa de vida (saúde) e do nível da educação. Na esfera internacional, temos dois livros básicos: Reconsiderar a riqueza, de Patrick Viveret, e Os novos indicadores de riqueza, de Jean-Gadrey e Jany-Catrice. Há inúmeras outras iniciativas em curso, que envolvem desde o Indicadores de Qualidade do Desenvolvimento do IPEA, até os sistemas de informação para seguir o desenvolvimento local, como o Atlas Municipal do PNUD, os sistemas integrados de indicadores de qualidade de vida nas cidades na linha do IRBEM do movimento Nossa São Paulo. Temos evidentemente o excelente relatório, de 2009, bastante demolidor, assinado por nada menos que Amartya Sem, Joseph Stiglitz e Jean Paul Fitoussi. E, muito recentemente, temos o aporte fundamental de Kate Raworth, como veremos adiante. O essencial, para nós, é que estamos refazendo as nossas contas. Não é secundário, nem “técnico”, nem mistério de economistas: contabilizar de forma adequada o que fazemos constitui a bússola que nos permite nos orientarmos como sociedade. E se a bússola aponta uma direção errada…

A destruição ambiental

As limitações do PIB aparecem facilmente através de exemplos. Um paradoxo levantado por Viveret, por exemplo, é que quando o navio petroleiro Exxon Valdez naufragou nas costas do Alaska, foi necessário contratar inúmeras empresas para limpar as costas, o que elevou fortemente o PIB da região. Mais recentemente, o desastre da British Petroleum(BP) no Golfo do México contribuiu para o PIB americano. O mesmo raciocínio pode ser aplicado aos desastres de Mariana e Brumadinho. Como pode a destruição ambiental aumentar o PIB? Simplesmente porque o PIB calcula apenas o volume de atividades econômicas, não calcula se elas são úteis ou nocivas. O PIB mede o fluxo dos meios, não o atingimento dos fins. Na metodologia atual, a poluição aparece como sendo ótima para a economia, e o IBAMA como o vilão que impede a economia de avançar. Nessa lógica, as pessoas que jogam pneus e fogões velhos no rio Tietê, obrigando o Estado a contratar empresas para o desassoreamento da calha, contribuem para a produtividade do país. No Brasil, os negociantes da agroindústria avançam na Amazônia; na Indonésia, liquidam as florestas para produzir combustível “limpo” para a Europa; e falam em alimentar o mundo e em dinamizar a economia. Isto é conta?

A conta do capital natural

Mais grave ainda é o PIB não levar em conta a redução dos estoques de bens naturais do planeta. Quando um país explora seu petróleo, isto é apresentado como eficiência econômica, pois aumenta o PIB. A expressão “produtores de petróleo” é interessante, pois nunca ninguém produziu petróleo: é um estoque de bens naturais, e a sua extração, se der lugar a atividades importantes para a humanidade, é positiva; mas sempre devemos levar em conta que estamos reduzindo o estoque de bens naturais que entregaremos aos nossos filhos.

Desde 2003, por exemplo, o Banco Mundial compreende extração de petróleo como descapitalização e não como aumento da riqueza de um país. Extração de petróleo está na conta da poupança nacional e não na conta do PIB.

Desde 2003, por exemplo, o Banco Mundial já não considera mais extração de petróleo como o aumento da riqueza de um país, mas sim como sua descapitalização. Isto é elementar, se uma empresa ou um governo apresentasse sua contabilidade no fim de ano sem levar em conta a variação de estoques, teria as suas contas rejeitadas. Não levar em conta o consumo de bens não renováveis que estamos dilapidando, de forma radical, e a organização das nossas prioridades. Em termos técnicos, o PIB é uma contabilidade grosseiramente errada, que leva a um desastre planetário em futuro não distante.

Custos que aumentam o PIB

A diferença entre os meios e os fins na contabilidade aparece claramente nas opções de saúde. A Pastoral da Criança, por exemplo, desenvolve um amplo programa de saúde preventiva, atingindo milhões de crianças até 6 anos de idade através de uma rede de cerca de 450 mil voluntárias. São responsáveis, nas regiões onde trabalham, por 50% da redução da mortalidade infantil, e 80% da redução das hospitalizações. Com isto, menos crianças ficam doentes, o que significa que se consome menos medicamentos, que se usa menos serviços hospitalares, e que as famílias vivem mais felizes. Mas o resultado do ponto de vista das contas econômicas é completamente diferente: ao cair o consumo de medicamentos, o uso de ambulâncias, de hospitais e de horas de médicos, reduz-se também o PIB. Mas o objetivo é aumentar o PIB ou melhorar a saúde (e o bem-estar) das famílias?

Todos sabemos que a saúde preventiva é muito mais produtiva, em termos de custo-benefício, do que a saúde curativa-hospitalar. Mas, se nos colocarmos do ponto de vista de uma empresa com fins lucrativos, que vive de vender medicamentos ou de cobrar diárias nos hospitais, é natural que prevaleça a visão do aumento do PIB e do aumento do lucro. É a diferença entre os serviços de saúde e a indústria da doença. Na visão privatista, a falta de doentes significa falta de clientes. Nenhuma empresa dos gigantes chamados internacionalmente de “big pharma” investe seriamente em vacinas, e muito menos em vacinas de “doenças de pobres” como a malária. Privilegiam em particular doenças degenerativas de idosos, autênticas minas de ouro. Sobre como funciona esta deformação de opções Marcia Angell, aposentada editora do New England Journal of Medicine, escreveu um livrinho que é uma pérola, A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. Ver este ângulo do problema é importante, pois nos faz perceber que a discussão não é inocente, e os que clamam pelo progresso identificado com o aumento do PIB querem, na realidade, maior dispêndio de meios, e não melhores resultados. Pois o PIB não mede resultados, mede o fluxo dos meios.

Medindo os meios em vez dos resultados

É igualmente importante levar em consideração que o trabalho das 450 mil voluntárias da Pastoral da Criança não é contabilizado como contribuição para o PIB. Para o senso comum, isto parece uma atividade que não é propriamente econômica, como se fosse um esparadrapo social. Os gestores da Pastoral, no entanto, já aprenderam a corrigir a contabilidade oficial. Contabilizam a redução do gasto com medicamentos, que se traduz em dinheiro economizado na família, e que é liberado para outros gastos. Nesta contabilidade corrigida, o não-gasto aparece como aumento da renda familiar. As noites bem dormidas quando as crianças estão bem representam qualidade de vida, coisa muitíssimo positiva, e que é afinal o objetivo de todos os nossos esforços. O fato da mãe ou do pai não perderem dias de trabalho pela doença dos filhos também ajuda a economia.

A importância desta dimensão da contabilidade é enorme, na medida em que rapidamente, no mundo, o centro de gravidade das atividades produtivas se desloca da produção física de bens e serviços para as chamadas políticas sociais, como saúde, educação, cultura, segurança e semelhantes, bens e serviços essencialmente de consumo coletivo. Um exemplo ajuda: no Canadá, onde a saúde constitui um serviço público gratuito e universal, o custo anual é de 3.400 dólares por habitante. Nos Estados Unidos, onde domina a saúde como negócio, o custo é de 9.400 dólares, com qualidade incomparavelmente mais baixa. É claro que a irracionalidade do sistema americano, baseado no out-of-pocket, saúde como serviço comercial, aumenta o PIB. Hoje os serviços de saúde nos Estados Unidos atingem 20% do PIB, tornando-se inclusive o centro de todos os debates eleitorais. Mas o que queremos, é mais saúde ou mais PIB?  O que deveríamos estar medindo é a produtividade sistêmica de um setor, em termos de melhores resultados para a sociedade pelo menor custo possível.

Escassez que aumenta o PIB

Uma outra forma de aumentar o PIB é reduzir o acesso a bens gratuitos. Na Riviera de São Lourenço, perto de Santos, as pessoas não têm mais livre acesso à praia, a não ser através de uma série de enfrentamentos constrangedores. O condomínio contribui muito para o PIB local, pois as pessoas têm de gastar bastante para ter acesso ao que antes acessavam gratuitamente. Quando as praias são gratuitas, não aumentam o PIB. Hoje os painéis publicitários nos “oferecem” as maravilhosas praias e ondas da região, como se as tivessem produzido. A busca de se restringir a mobilidade, o espaço livre de passeio, o lazer gratuito oferecido pela natureza, gera o que hoje chamamos de “economia do pedágio”, de empresas que aumentam o PIB ao restringir o acesso aos bens. Hoje os parques de São Paulo estão todos ameaçados, não por racionalidade econômica, mas por interesse de negociatas. Teremos uma vida mais pobre, e um PIB maior. Este ponto é particularmente grave no caso do acesso ao conhecimento. Trata-se de uma área onde há excelentes estudos recentes, como A Era do Acesso e A sociedade de custo marginal zero, de Jeremy Rifkin; The Future of Ideas, de Lawrence Lessig; O imaterial, de André Gorz, ou ainda Wikinomics, de Don Tapscott. Na era do conhecimento, as nossas universidades de linha de frente trabalham com xerox de capítulos isolados do conjunto da obra, autênticos ovnis científicos, quando o MIT, principal centro de pesquisas dos Estados Unidos, disponibiliza os cursos na íntegra gratuitamente online, no quadro do OpenCourseWare (OCW). Na China prevalece o CORE (China Open resources for Education). Mas ainda predominam os copyrights, que incidem sobre as obras até 90 anos após a morte do autor. E se fala naturalmente em “direitos do autor”, quanto se trata essencialmente de direitos das editoras, dos intermediários (1).[i] No Brasil, teremos acesso aberto às obras de Paulo Freire a partir de 2050.

É impressionante investirmos por um lado imensos recursos públicos e privados na educação, e por outro lado empresas tentarem restringir o acesso às pesquisas. O objetivo é assegurar lucro das editoras, aumentando o PIB, ou termos melhores resultados na formação, facilitando e incentivando (em vez de cobrar) o aprendizado? Trata-se, aqui também, da economia do pedágio, de impedir a gratuidade que as novas tecnologias permitem por meio da pesquisa temática e o acesso online, a pretexto de proteger a remuneração dos produtores de conhecimento.

Um documentário básico de Jason Schmitt, Paywall: the business of scholarship, de setembro de 2018, ajuda bastante a entender a dimensão das restrições à pesquisa artificialmente criadas, travando o seu desenvolvimento. Hoje o sistema de intermediação de publicações científicas se tornou um negócio de 25 bilhões de dólares, ganhos por grupos como Elsevier que não têm nenhuma contribuição senão o de negociar preços, apoiando-se na obrigação dos pesquisadores ganharem pontos (impact factor). É um oligopólio que a pretexto de excelência científica trava o acesso. Os custos de intermediação impressionantes e lucros da ordem de 35% ao ano claramente aumentam o PIB no curto prazo, mas travam os efeitos multiplicadores da generalização do conhecimento científico-tecnológico.

Pelo contrário, os sistemas abertos, na linha do open access, como ArXiv, Plos, Sci-Hub e outras iniciativas que asseguram acesso gratuito online à ciência de ponta levam a que muitos mais cientistas possam expandir a sua produtividade, em vez de reinventar a roda. A generalização do acesso à ciência gera evidentemente efeitos multiplicadores, em particular para as universidades e países que estão fora do clube dos ricos. Nos EUA já são 15 mil cientistas que boicotam as chamadas revistas indexadas. Nesta era de transformações tecnológicas, a batalha pela difusão das pesquisas, em particular das que foram financiadas com recursos públicos, é fundamental. Margens de lucro deste montante sobre o que não precisaram produzir caracterizam um rentismo absurdo. O imenso aumento de produtividade que significaria o processo aberto de colaboração científica é perdido. O pedágio aumenta o PIB, mas trava o desenvolvimento.

A confusa medição da economia intangível

O argumento orienta a pesquisa de Haskel e Westlake, no seu Capitalism without Capital, que caracteriza a nossa era de economia imaterial, em que o conhecimento tornou-se o principal fator de produção: “O nosso argumento central neste livro é que há algo de fundamentalmente diferente no caso do investimento intangível, e que entender a firme transição para o investimento intangível nos ajuda a entender alguns dos desafios chave que hoje enfrentamos: inovação e crescimento, desigualdade, o papel da gestão bem como a reforma financeira e de políticas (policy). Sustentaremos aqui que há duas grandes diferenças com os ativos intangíveis. Primeiro, é que a maior parte dos sistemas de medição os ignora. Há boas razões para isso, mas à medida que os intangíveis têm se tornado mais importantes, isso significa que hoje estamos tentando medir o capitalismo sem contar todo o capital. Segundo, as propriedades econômicas básicas dos intangíveis fazem com que uma economia densa em intangíveis se comporte de maneira diferente de uma economia densa em tangíveis. ”(7) Esta inadequação da metodologia do cálculo do PIB à economia do conhecimento moderno é mais um defeito estrutural de importância crescente. Estamos falando do principal eixo de atividades da economia moderna. Na produção e venda de uma bicicleta, há registros e contabilização das transações. A rede mundial de pesquisa do genoma, em que os resultados são compartilhados de forma colaborativa sem intermediação, escapa simplesmente ao radar. O Wikinomics de Don Tapscott, mostra os inúmeros setores envolvidos. Arun Sundararajan, em Economia Compartilhada, elenca as inúmeras iniciativas no mundo, muito além do Uber e Airbnb que aparecem na mídia. Sim, o nome do autor é assim mesmo, nem todo mundo chama Alberto Lopes.

O tempo esquecido

Outra deformação deste tipo de conta é a não contabilização do tempo das pessoas. No nosso ensaio Democracia Econômica, inserimos um capítulo “Economia do Tempo”. Está disponível online, e gratuitamente. O essencial é que o tempo é por excelência o nosso recurso não renovável. Quando uma empresa nos obriga a esperar na fila, ela faz um cálculo: a fila é custo do cliente, não se pode abusar demais. Mas o funcionário é custo da empresa, e, portanto, vale a pena abusar um pouco. Isto se chama externalização de custos.  Imaginemos que o valor do tempo livre da população economicamente ativa seja estimado em 5 reais a hora. Ainda que a produção de automóveis represente um aumento do PIB, as cerca de 2 horas diárias perdidas pelo paulistano pelo encalacramento do trânsito poderiam ser contabilizadas. Com 6 milhões de pessoas que se deslocam diariamente para o trabalho em São Paulo, são 60 milhões de reais.  A partir desta conta, passamos a olhar de outra forma a viabilidade econômica da construção de metrô e de outras infraestruturas de transporte coletivo. E são perdas que permitem equilibrar as opções pelo transporte individual: produzir carros realmente aumenta o PIB, mas é uma opção que só é válida enquanto apenas minorias têm acesso ao automóvel. Hoje São Paulo anda em primeira e segunda, gastando com o carro, com a gasolina, com o seguro, com as doenças respiratórias, com o tempo perdido. Os quatro primeiros itens aumentam o PIB. O último, o tempo perdido, não é contabilizado. Aumenta o PIB, reduz-se a mobilidade, e em particular gasta-se inutilmente o nosso tempo de vida. Mas o carro afinal era para quê?

Esqueceram de medir a riqueza

O PIB mede o fluxo anual, esqueceu de medir a riqueza acumulada. Dividir o PIB do país pela população nos vai dar uma boa aproximação da renda per capita, por pessoa. Aliás o Brasil está na média mundial, cerca de 11 mil dólares anuais, o significa que o que produzimos hoje permitiria assegurar uma renda razoável de 10 mil reais por mês por família de 4 pessoas. Nosso problema não é pobreza, é caos distributivo. Estamos entre os 10 países mais desiguais do planeta em termos de renda. Mas uma coisa é o fluxo, a renda que me chega a cada ano, e a riqueza acumulada: a minha casa, o meu carro, a minha poupança constituem o meu estoque de riqueza. Tirando as dívidas, trata-se da riqueza domiciliar líquida (net household wealth).

Só recentemente começamos a medir isso, e é espantoso ver a que ponto a desigualdade se torna mais visível. No Brasil, 6 pessoas têm mais riqueza acumulada do que a metade mais pobre da população, 105 milhões de pessoas. O PIB naturalmente não mede isso: mede o fluxo, não o estoque. No mundo, dependemos do Crédit Suisse, um grande banco internacional, para entender o tamanho do desastre: nas cifras apresentadas em Davos, em janeiro de 2019, constatamos que, em 2017, 26 pessoas no mundo tinham mais riqueza acumulada do que a metade mais pobre da população mundial. Visto de outra forma, 1% mais rico tem mais riqueza do que os 99% seguintes. Produziram isso? É uma ONG, a Oxfam, que baseada nos dados do Crédit Suisse (administra fortunas, sabe do que fala) nos apresenta os dados sistematizados, permitindo abrir os olhos das pessoas para o drama que se aprofunda. Os dois principais problemas que afligem o planeta – a destruição ambiental e a desigualdade explosiva – simplesmente não aparecem no PIB. Larry Elliott, do Guardian, que acompanhou as discussões das elites em Davos (2)[ii], constata que “a economia no seu sentido tradicional é inútil quando se trata de enfrentar os problemas urgentes que precisam ser resolvidos.”

A busca de alternativas

Alternativas? Sem dúvida, e estão surgindo rapidamente. Quando o PIB foi criado nos anos 1930, e generalizado ao permitir o seguimento da reconstrução da Europa após a II Guerra mundial, medir o volume de ferro e de cimento, de certa forma, refletia adequadamente os avanços. Hoje, porém, os limites do PIB são evidentes. Não haverá o simples abandono do PIB, e sim a compreensão de que ele mede apenas um aspecto, e de forma muito limitada, que é o fluxo de uso de alguns meios produtivos. Mede, de certa forma, a velocidade da máquina. Não mede para onde vamos, só nos diz se estamos indo depressa ou devagar. Não responde aos problemas essenciais que queremos acompanhar: estamos produzindo o quê, com que custos, com que prejuízos (ou vantagens) ambientais, e para quem? Aumentarmos a velocidade sem saber para onde vamos não faz sentido. Contas incompletas são contas erradas, porque dão uma falsa impressão de avanços, quando não avaliamos de que lado está o progresso.

Em 2009, uma comissão orientada por Joseph Stiglitz, Amartya Sen e Jean-Paul Fitoussi apresentaram um relatório, Report by the Commission on the measurement of Economic Performance and Social Progress, abertamente crítico da presente forma de medida do progresso econômico e social. Ainda que não apresentando uma proposta fechada, o relatório acabou traçando os pontos de referência de uma nova contabilidade nacional. De forma geral, a visão consiste em resgatar as dimensões das contas nacionais que melhor representam os interesses da sociedade: “Já é tempo de deslocar o nosso sistema de medição das medidas da produção econômica para a medida do bem-estar das pessoas. E as medidas do bem-estar deverão ser colocadas no contexto da sustentabilidade” (3).[iii] Portanto, do foco de medição da produção passamos para o foco no resultado final, a qualidade de vida, mas sustentável em termos das futuras gerações. O social e o ambiental tornam-se o eixo organizador da informação.

Relativamente ao PIB, no relatório Stiglitz, a cifra central alternativa seria a renda nacional disponível líquida (net national disposable income), cifras que uma vez desagregadas para a perspectiva domiciliar permitem avaliar melhor o impacto econômico para a sociedade. Há um deslocamento, em termos do peso relativo dos setores produtivos, com maior atenção para as áreas hoje muito mais centrais e difíceis de mensurar, como saúde, cultura e educação O ponto maior de atenção passa a ser a renda domiciliar, o que permite dar melhor visibilidade às condições de vida das famílias. A questão chave da desigualdade entra para o primeiro plano, com uma contabilidade que reflita efetivamente a distribuição. A contas deverão incluir as atividades não monetárias.

Um avanço? Sem dúvida, mas ainda estamos longe de um sistema articulado e transparente de contabilização dos nossos progressos. O relatório serviu em todo caso para recolocar a discussão do PIB na pauta. Uma imagem utilizada pelos autores, a de que estamos pilotando uma sociedade complexa com apenas um indicador de velocidade no painel, é muito expressiva.

Há diversas apreciações do relatório Stiglitz, mas trata-se sem dúvida de um avanço para um referencial que já tem pés e cabeça, contrariamente às deficiências gritantes do PIB. O mais provável é que este movimento de mudança das contas nacionais irá incorporar um conjunto de aportes dos mais variados setores e das mais variadas metodologias. Para quem queira acompanhar, há os trabalhos mencionados acima, em particular a boa visão de conjunto que oferece o estudo de Jean Gadrey, editado em português (Senac). Temos de ser realistas: não haverá cidadania sem uma informação adequada, e adequadamente distribuida. E precisamos constatar que a contabilidade nacional, herdada ainda dos anos 1930, precisa evoluir. Não podemos nos queixar que as pessoas não entendem o que acontece com a economia, quando sequer produzimos as informações necessárias para as pessoas se orientarem. Eu vejo o PIB hoje como um impressionante instrumento de demagogia política.

Uma referência básica: Kate Raworth

Um aporte de grande importância pode ser encontrado no recente trabalho de Kate Raworth, Doughnut Economics: 7 ways to think like a 21st Century Economist, de 2017O livro ajuda a mudar como pensamos a ciência econômica. Exagero? Pois essa britânica de Oxford alia simplicidade e clareza na exposição, com uma revisão em profundidade de como vemos, analisamos e contabilizamos as atividades econômicas. Ela inclusive faz a ponte com as teorias herdadas, avaliando seus aportes e fragilidades frente a um mundo que mudou profundamente. Ela não descarta as teorias herdadas, mas organiza a transição.

George Monbiot, no The Guardian, não exagera: “Eu li este livro com a excitação com que as pessoas do seu dia devem ter lido a Teoria Geral de John Maynard Keynes. É brilhante, entusiasmante e revolucionário. Com um poço profundo de aprendizagem, sabedoria e pensamento profundo, Kate Raworth redesenhou e redefiniu os marcos da teoria econômica. É completamente acessível, mesmo para pessoas sem conhecimento do assunto. Eu acredito que Doughnut Economics vai mudar o mundo”. Comentário forte, mas surpreendentemente adequado. Para a resenha feita pelo próprio Monbiot, para o Guardian, veja http://www.monbiot.com/2017/04/13/circle-of-life/

Pois não é exagero mesmo. Com décadas de busca por um ajuste da teoria econômica às novas realidades, eu fiquei realmente feliz com o resultado. O mundo mudou. Continuarmos presos no cálculo do PIB que perdeu qualquer sentido. Não contabilizar os impactos ambientais já beira a idiotice, quando temos 7,5 bilhões de habitantes consumindo ferozmente. Falar em mercado livre perdeu qualquer sentido na era dos gigantes financeiros e das megacorporações articuladas. Pensar a economia nacional e, mais ainda, a política econômica nacional, na era da globalização, é cada vez menos realista: onde estão contabilizados os 520 bilhões de dólares (um terço do nosso PIB) escondidos em paraísos fiscais? Patentes de décadas no ritmo presente de transformação tecnológica são pré-históricas. Enfim, tantos aspectos da atividade econômica mudaram, em particular na sua dimensão institucional, que já não resolve acrescentar um “neo-” ou um “pós-“ às teorias herdadas, e muito menos colocar alguns remendos no cálculo do PIB.

De forma simples e direta, Raworth faz um tipo de “reset” de como vemos o mundo econômico, e a nova visão faz todo sentido. Consciente de que precisamos hoje de uma imagem de referência, uma âncora imaginária para os nossos conhecimentos econômicos, a autora substitui nossos tradicionais e complexos gráficos por uma imagem: o doughnut, a nossa familiar rosquinha. Como imagem, a rosquinha é poderosa, e como a Oxfam tinha desenvolvido esta metodologia, eu também a vinha utilizando. Em Doughnut Economics, ela já aparece completa. Vale a pena se apropriar de uma ideia básica: a de que estamos produzindo algumas coisas em excesso, como poluição do ar; e outras de forma insuficiente, como educação e saúde. Os excessos aparecem explodindo para além da rosca e as insuficiências não chegam à rosca, ficam no vazio interno.

Com esse desenho simples estamos saindo do absurdo do PIB, em que a destruição ambiental como desmatamento ou vazamentos de petróleo aparecem como positivos, pois aumentam as atividades e logo o PIB. Evoluímos para uma conta completa que permite identificar o que deve ser controlado, por exemplo a contaminação química; e o que deve ser expandido, por exemplo o acesso aos alimentos. Entramos assim na economia do bom senso. Doughnut Economics nos traz um ponto de partida sobre o qual podemos construir as políticas, organizar estímulos ou regulação, e repensar as nossas teorias. Veja a imagem:

Ou seja, no vazio interno da rosca, temos as insuficiências, shortfall, o que tem de se remediar para entrar no espaço seguro da própria rosca. E no vazio externo, temos os excessos, o overshooting, que precisamos reduzir. Nada muito diferente de como cuidamos da nossa casa, onde temos de complementar as insuficiências e controlar os excessos. Com esse estudo, a economia deixa de ser um mistério para amadores de modelos matemáticos, e passa a fazer sentido para os comuns dos mortais. Ao mesmo tempo, temos uma imagem simples e desafios que são coerentes com o que foi decidido nas grandes conferências de 2015, com o Acordo de Paris e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a Agenda 2030, em Nova Iorque. (38-39)

Na tradicional rosquinha da padaria, temos uma âncora mental. Ficar no espaço da rosca, onde está a massa e o sabor, é o que temos de resgatar. O vazio do meio são as insuficiências, como acesso à alimentação, enquanto o vazio externo é o que estamos extrapolando, como as emissões de carbono. A simplicidade e facilidade de leitura, inclusive de visualização mental, dos desafios econômicos, são essenciais, pois enquanto a imensa maioria da população não entender a lógica de como usamos os nossos recursos, as farsas irão continuar. Inclusive a farsa maior de que precisamos dos ricos pois eles investem e geram empregos, e de pobres pois a pobreza os leva a trabalhar. Na realidade, os ricos hoje fazem aplicações financeiras em vez de investir, colocam os recursos em paraísos fiscais e, portanto, pouco investem e mal pagam os seus impostos. No mundo que funciona, impostos sobre o capital improdutivo levariam os rentistas a buscar fazer algo de útil com os seus capitais. E como constatamos em qualquer iniciativa que assegurou mais recursos para a população, o resultado é maior demanda, multiplicação de pequenas e médias empresas e expansão do emprego. O que aliás gera maior massa de impostos e equilíbrio de contas públicas. Veja-se o sucesso do New Deal, do Welfare State, e até mais recentemente da “geringonça” portuguesa.

Em Doughnut Economics, ao vermos em que setores e com que atividades estamos por um lado dilapidando os recursos naturais do planeta por excessos de uso, e por outro que insuficiências existem em diversas partes da população, podemos, setor por setor, canalizar os esforços e recursos financeiros para onde irão gerar maior equilíbrio.

Ou seja, podemos calcular onde devemos nos restringir, onde podemos expandir, em que setores há prioridades para assegurar o básico para a população. A economia passa a fazer sentido. Tim Jackson, que comenta o livro, lembra o absurdo de termos sido “persuadidos a gastar o dinheiro que não temos em coisas que não precisamos para causar impressões que não irão durar sobre pessoas que não nos importam.” Já era tempo que alguém desse um pouco de sentido na visão geral da economia realmente existente. No centro das respostas, não estão modelos complicados, e sim a “capacidade do século 21 de criar formas muito mais efetivas de governança, em cada escala, do que as que têm sido vistas anteriormente.”(51) Volto a afirmar: é uma leitura fundamental, que permite transitarmos para a economia do século 21, transição necessária, pois as mudanças são profundas.


Há razões políticas para tanta insistência em manter uma forma de avaliação do crescimento econômico e social tão deformada? Quanto a isso, não há dúvidas. É imensamente proveitoso para um conjunto de grupos econômicos e financeiros privados usar uma contabilidade em que a produção de um brinquedo de plástico apareça como produto, e o trabalho dos que organizam serviços de saúde apareça como custos, sem falar de virarmos as costas para os desastres ambientais. A forma de contabilizarmos o nosso progresso e a cifra mais representativa respondem a interesses, não a técnicas contábeis responsáveis. E deixa, evidentemente, o grosso da população no escuro.

Fechamos a presente nota técnica com uma citação excepcionalmente eloquente de Robert Kennedy, de 1968 ainda, quando o PIB americano era ainda de 800 bilhões (hoje é da ordem de 18 trilhões).

“Durante um tempo demasiadamente longo, parece que reduzimos a nossa excelência pessoal e os valores da comunidade à mera acumulação de coisas materiais. O nosso Produto Interno Bruto, agora, já supera os US$800 bilhões por ano, mas este PIB, – se julgarmos os Estados Unidos da América por este critério –  este PIB contabiliza a poluição do ar e a publicidade de cigarros, e as ambulâncias para limpar a carnificina nas nossas autoestradas. Soma as fechaduras especiais para as nossas portas e as prisões para as pessoas que as rompem. Soma a destruição florestal e a perda da nossa maravilha natural na expansão caótica urbana…E os programas de televisão que glorificam a violência para vender brinquedos para as nossas crianças. No entanto, o produto nacional bruto não conta a saúde das nossas crianças, a qualidade da sua educação ou a alegria das suas brincadeiras. Não inclui a beleza da nossa poesia ou a solidez dos nossos casamentos, a inteligência do nosso debate público ou a integridade dos nossos funcionários públicos. Não mede nem o nosso humor nem a nossa coragem, nem nossa sabedoria nem a nossa aprendizagem, nem a nossa compaixão nem a nossa devoção ao nosso país. Resumindo, mede tudo, exceto aquilo que faz a vida valer a pena” (4).[iv]

De 1968 para cá, o PIB americano subiu muito, e todas as pesquisas de satisfação de vida indicam uma queda progressiva. Afinal, de que se trata? De aumentar o PIB ou de viver melhor? E qual dos dois objetivos deve ser medido? O PIB, tão indecentemente exibido na mídia, e nas doutas previsões dos consultores, merece ser colocado no seu papel de ator coadjuvante. O objetivo é vivermos melhor. A economia é apenas um meio. É o nosso avanço para uma vida melhor que deve ser medidoE de uma forma que possamos entendê-lo.

Notas

(1) O material do MIT pode ser acessado no site www.ocw.mit.edu; Em vez de tentar colocar pedágions na expansão de novas tecnologias, como aliás é o caso das empresas de celular que lutam contra o wi-fi urbano e a comunicação quase gratuita via skype e outros programasas empresas devem pensar em se reconverter, e prestar serviços úteis ao mercado. A IBM ganhava dinheiro vendendo computadores, e quando este mercado se democratizou com o barateamento dos computadores pessoais migrou para a venda de softwares. Estes hoje devem se tornar gratuitos (a própria IBM optou pelo Linux), e a empresa passou a se viabilizar prestando serviços de apoio informático. Travar o acesso aumenta o PIB, mas empobrece a sociedade.

(2) Elliott, Larry – Davos 2019: the yawning gap between rethoric and reality – The Guardian, 27 Jan. 2019 – https://www.theguardian.com/business/2019/jan/27/davos-2019-the-yawning-gap-between-rhetoric-and-reality

(3) The time is ripe for our measurement system to shift emphasis from measuring economic production to measuring people’s well being. And the mesasures of well-being should be put in a context of sustainability””. J. Stiglitz et al., Report by the Commission on the measurement of Economic Performance and Social Progress,  September 2009, p. 12 – http://www.stiglitz-sen-fitoussi.fr

(4) http://www.jfklibrary.org/Historical+Resources/Archives/Reference+Desk/

Speeches/RFK/RFKSpeech68Mar18UKansas.htm )

Referências:

Elliott, Larry – Davos 2019: the yawning gap between rethoric and reality – The Guardian, 27 Jan. 2019 – https://www.theguardian.com/business/2019/jan/27/davos-2019-the-yawning-gap-between-rhetoric-and-reality

Gadrey, Jean e Florence Jany-Catrice – Os novos indicadores de riqueza – Ed. Senac, São Paulo, 2006

Haskel, Jonathan and Stan Westlake – Capitalism without Capital: the rise of the intangible economy – Princeton University Press, Oxford 2018

Raworth, Kate – Doughnut Economics: 7 ways to think like a 21st century economist – Chelsea Green Publishing, White River Junction, 2017 – http://www.chelseagreen.com

Schmitt, Jason – Paywall: the Business of Scholarship – (Documentário, 1h 04) – http://dowbor.org/2019/01/paywall-the-business-of-scholarship-filme-de-jason-schmitt-1h04-set-2018.html/

Stiglitz, Joseph, Amartya Sen and Jean Paul Fitoussi, Report by the Commission on the measurement of Economic Performance and Social Progress,  September 2009, p. 12 – http://www.stiglitz-sen-fitoussi.fr

Sundararajan, Arun – The sharing Economy: the end of employment and the rise of crowd-based capitalism – Cambridge, MIT Press, 2016, ISBN 9780262034579

Viveret, Patrick – Reconsiderar a riqueza – UNB, Brasília, 2006

Fonte: Outras Palavras

Desnudando o 1% brasileiro — que não paga impostos

Jfamilia marinho globo

Nova pesquisa revela: desigualdade brasileira é maior do que se calculava. Super-ricos ganham 964 vezes mais que média da população. Reforma Tributária é cada vez mais indispensável

Por Róber Iturriet Avila

Somente a partir do final de 2014 a Receita Federal do Brasil passou a disponibilizar mais dados brutos das declarações de imposto de renda pessoa física. À medida que essas informações vêm à tona, é possível estabelecer algumas conclusões. Uma delas é que a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD) não é precisa no que tange à renda dos estratos superiores da sociedade brasileira. Outra conclusão é que a concentração de renda é superior ao que as surveys (pesquisas) transmitem.

Marc Morgan Milá é um dos autores que trouxe mais luz sobre os dados das declarações de imposto de renda ao concluir seu trabalho naParis School of Economics, ao final de 2015. O Trabalho de Milá (2015) estabelece estimativas do topo da renda diferentes daquelas presentes na PNAD.  No Brasil, no ano de 2013, a preços de fevereiro de 2016, os cortes dos estratos superiores eram os seguintes:

  • 10 % mais ricos: renda mensal superior a R$ 4.191,88
  • 5% mais ricos: renda mensal superior a R$ 7.536,61
  • 1% mais ricos: renda mensal superior a R$ 23.128,71
  • 0,1% mais ricos: renda mensal superior a R$ 89.971,47
  • 0,05% mais ricos: renda mensal superior a R$ 428.849,47
  • 0,01% mais ricos: renda mensal superior a R$ 690.829,25

Cabe destacar que a renda média do grupo que figura o topo é bastante superior ao corte limiar. Dentre os 0,1% mais ricos, a renda média mensal é de R$ 161.146,38 (valores atualizados). Já dentre os 0,01% mais ricos, a renda média mensal é de R$ 2.213.187,12 mensais (atualizados), ou seja, 964,5 vezes superior à média brasileira.

Em 2013, o 1% mais rico apropriou-se de 26,6% da renda nacional, já o 0,01% mais rico absorveu 4,8% do total. Trata-se do maior nível de desigualdade já registrado a partir dos dados tributários, os quais são mais confiáveis do que os de surveys…  A concentração existente no Brasil só encontra paralelo com os 0,01% mais ricos dos Estados Unidos.

Cumpre ressaltar que esses dados são apenas de renda, uma variável fluxo, e não de riqueza, uma variável estoque. A riqueza é sempre mais concentrada, em qualquer país. Os 51,4 mil brasileiros mais ricos possuíam, em 2013, uma média patrimonial de R$ 24,8 milhões (a preços de 2016).

Ao longo do século XX, os países corrigiram as sabidas disparidades geradas pelo sistema capitalista através da tributação e de políticas públicas. Na esteira dessas transformações, o Brasil passou a cobrar imposto de renda a partir de 1923. Entretanto, a tributação sobre renda e propriedade no Brasil são sensivelmente baixas em um comparativo internacional. Nos países mais desenvolvidos, a principal fonte de receita tributária é o imposto sobre a renda. Mesmo o México, o Chile e a Argentina possuem um sistema tributário mais justo em termos sociais do que o brasileiro. Os dois primeiros por cobrarem mais impostos sobre a renda e o último por cobrar mais impostos sobre o patrimônio.

Nas décadas de 1980 e 1990, as alíquotas máximas de imposto de renda no Brasil foram reduzidas de maneira expressiva… Atualmente a taxa máxima é de 27,5%, porém chegou a ser de 65% no Governo João Goulart.

Uma das principais distorções do sistema tributário brasileiro é a isenção de imposto de renda dos lucros e dividendos, vigente desde 1995.  A maior parte da renda do 1% mais rico advém de lucros e dividendos. Em 2013, as receitas ISENTAS dos 71,4 mil (aproximadamente 0,05%) brasileiros mais ricos foram de R$ 233,7 bilhões, a preços de 2016…

Referências

MILÁ, Marc Morgan.  Income concentration in a context of late development: an investigation of top incomes in Brazil using tax records, 1933-2013.  2015.165f. Dissertação (Mestrado) ― Paris School of Economics, Paris, 2015.

 

imagem – Roberto Marinho pai com seus 3 filhos: José Roberto Marinho, Roberto Irineu Marinho e João Roberto Marinho, acionistas do Grupo Globo. Três dos homens mais ricos do Brasil, segundo a Revista Forbes (2015)

Fonte: Outras Palavras

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Chris Hedges: Orwell estava certo. Huxley, também

Published on Monday, December 27, 2010 by TruthDig.com

2011: A Brave New Dystopia

by Chris Hedges

As duas grandiosas visões sobre uma futura distopia foram as de George Orwell em 1984 e de Aldous Huxley em Brave New World. O debate entre aqueles que assistiram nossa decadência em direção ao totalitarismo corporativo era sobre quem, afinal, estava certo. Seria, como Orwell escreveu, dominado pela vigilância repressiva e pelo estado de segurança que usaria formas cruas e violentas de controle? Ou seria, como Huxley anteviu, um futuro em que abraçariamos nossa opressão embalados pelo entretenimento e pelo espetáculo, cativados pela tecnologia e seduzidos pelo consumismo desenfreado? No fim, Orwell e Huxley estavam ambos certos. Huxley viu o primeiro estágio de nossa escravidão. Orwell anteviu o segundo.

Temos sido gradualmente desempoderados por um estado corporativo que, como Huxley anteviu, nos seduziu e manipulou através da gratificação dos sentidos, dos bens de produção em massa, do crédito sem limite, do teatro político e do divertimento. Enquanto estávamos entretidos, as leis que uma vez mantiveram o poder corporativo predatório em cheque foram desmanteladas, as que um dia nos protegeram foram reescritas e nós fomos empobrecidos. Agora que o crédito está acabando, os bons empregos para a classe trabalhadora se foram para sempre e os bens produzidos em massa se tornaram inacessíveis, nos sentimos transportados do Brave New World para 1984. O estado, atulhado em déficits maciços, em guerras sem fim e em golpes corporativos, caminha em direção à falência.

[…]

Orwell nos alertou sobre um mundo em que os livros eram banidos. Huxley nos alertou sobre um mundo em que ninguém queria ler livros. Orwell nos alertou sobre um estado de guerra e medo permanentes. Huxley nos alertou sobre uma cultura de prazeres do corpo. Orwell nos alertou sobre um estado em que toda conversa e pensamento eram monitorados e no qual a dissidência era punida brutalmente. Huxley nos alertou sobre um estado no qual a população, preocupada com trivialidades e fofocas, não se importava mais com a verdade e a informação. Orwell nos viu amedrontados até a submissão. Mas Huxley, estamos descobrindo, era meramente o prelúdio de Orwell. Huxley entendeu o processo pelo qual seríamos cúmplices de nossa própria escravidão. Orwell entendeu a escravidão. Agora que o golpe corporativo foi dado, estamos nus e indefesos. Estamos começando a entender, como Karl Marx sabia, que o capitalismo sem limites e desregulamentado é uma força bruta e revolucionária que explora os seres humanos e o mundo natural até a exaustão e o colapso.

“O partido busca todo o poder pelo poder”, Orwell escreveu em 1984. “Não estamos interessados no bem dos outros; estamos interessados somente no poder. Não queremos riqueza ou luxo, vida longa ou felicidade; apenas poder, poder puro. O que poder puro significa você ainda vai entender. Nós somos diferentes das oligarquias do passado, já que sabemos o que estamos fazendo. Todos os outros, mesmo os que se pareciam conosco, eram covardes e hipócritas. Os nazistas alemães e os comunistas russos chegaram perto pelos seus métodos, mas eles nunca tiveram a coragem de reconhecer seus próprios motivos. Eles fizeram de conta, ou talvez tenham acreditado, que tomaram o poder sem querer e por um tempo limitado, e que logo adiante havia um paraíso em que os seres humanos seriam livres e iguais. Não somos assim. Sabemos que ninguém toma o poder com a intenção de entregá-lo. Poder não é um meio; é um fim. Ninguém promove uma ditadura com o objetivo de assegurar a revolução; se faz a revolução para assegurar a ditadura. O objeto da perseguição é perseguir. O objeto de torturar é a tortura. O objeto do poder é o poder”.

O filósofo político Sheldon Wolin usa o termo “totalitarismo invertido” no livro “Democracia Ltda.” para descrever nosso sistema político. É um termo que não faria sentido para Huxley. No totalitarismo invertido, as sofisticadas tecnologias de controle corporativo, intimidação e manipulação de massas, que superam em muito as empregadas por estados totalitários prévios, são eficazmente mascaradas pelo brilho, barulho e abundância da sociedade de consumo. Participação política e liberdades civis são gradualmente solapadas. O estado corporativo, escondido sob a fumaça da indústria de relações públicas, da indústria do entretenimento e do materialismo da sociedade de consumo, nos devora de dentro para fora. Não deve nada a nós ou à Nação. Faz a festa em nossa carcaça.

O estado corporativo não encontra a sua expressão em um líder demagogo ou carismático. É definido pelo anonimato e pela ausência de rosto de uma corporação. As corporações, que contratam porta-vozes atraentes como Barack Obama, controlam o uso da ciência, da tecnologia, da educação e dos meios de comunicação de massa. Elas controlam as mensagens do cinema e da televisão. E, como no Brave New World, elas usam as ferramentas da comunicação para aumentar a tirania. Nosso sistema de comunicação de massas, como Wolin escreveu, “bloqueia, elimina o que quer que proponha qualificação, ambiguidade ou diálogo, qualquer coisa que esfraqueça ou complique a força holística de sua criação, a sua completa capacidade de influenciar”.

O resultado é um sistema monocromático de informação. Cortejadores das celebridades, mascarados de jornalistas, experts e especialistas, identificam nossos problemas e pacientemente explicam seus parâmetros. Todos os que argumentam fora dos parâmetros são desprezados como chatos irrelevantes, extremistas ou membros da extrema esquerda. Críticos sociais prescientes, como Ralph Nader e Noam Chomsky, são banidos. Opiniões aceitáveis cabem, mas apenas de A a B. A cultura, sob a tutela dos cortesãos corporativos, se torna, como Huxley notou, um mundo de conformismo festivo, de otimismo sem fim e fatal.

Nós nos ocupamos comprando produtos que prometem mudar nossas vidas, tornar-nos mais bonitos, confiantes e bem sucedidos — enquanto perdemos direitos, dinheiro e influência. Todas as mensagens que recebemos pelos meios de comunicação , seja no noticiário noturno ou nos programas como “Oprah”, nos prometem um amanhã mais feliz e brilhante. E isso, como Wolin apontou, é “a mesma ideologia que convida os executivos de corporações a exagerar lucros e esconder prejuízos, sempre com um rosto feliz”. Estamos hipnotizados, Wolin escreve, “pelo contínuo avanço tecnológico” que encoraja “fantasias elaboradas de poder individual, juventude eterna, beleza através de cirurgia, ações medidas em nanosegundos: uma cultura dos sonhos, de cada vez maior controle e possibilidade, cujos integrantes estão sujeitos à fantasia porque a grande maioria tem imaginação, mas pouco conhecimento científico”.

Nossa base manufatureira foi desmantelada. Especuladores e golpistas atacaram o Tesouro dos Estados Unidos e roubaram bilhões de pequenos acionistas que tinham poupado para a aposentadoria ou o estudo. As liberdades civis, inclusive o habeas corpus e a proteção contra a escuta telefônica sem mandado, foram enfraquecidas. Serviços básicos, inclusive de educação pública e saúde, foram entregues a corporações para explorar em busca do lucro. As poucas vozes dissidentes, que se recusam a se engajar no papo feliz das corporações, são desprezadas como freaks.

[…]

A fachada está desabando. Quanto mais gente se der conta de que fomos usados e roubados, mais rapidamente nos moveremos do Brave New World de Huxley para o 1984de Orwell. O público, a certa altura, terá de enfrentar algumas verdades doloridas. Os empregos com bons salários não vão voltar. Os maiores déficits da história humana significam que estamos presos num sistema escravocrata de dívida que será usado pelo estado corporativo para erradicar os últimos vestígios de proteção social dos cidadãos, inclusive a Previdência Social.

O estado passou de uma democracia capitalista para o neo-feudalismo. E quando essas verdades se tornarem aparentes, a raiva vai substituir o conformismo feliz imposto pelas corporações. O vazio de nossos bolsões pós-industriais, onde 40 milhões de norte-americanos vivem em estado de pobreza e dezenas de milhões na categoria chamada “perto da pobreza”, junto com a falta de crédito para salvar as famílias do despejo, das hipotecas e da falência por causa dos gastos médicos, significam que o totalitarismo invertido não vai mais funcionar.

Nós crescentemente vivemos na Oceania de Orwell, não mais no Estado Mundial de Huxley. Osama bin Laden faz o papel de Emmanuel Goldstein em 1984. Goldstein, na novela, é a face pública do terror. Suas maquinações diabólicas e seus atos de violência clandestina dominam o noticiário noturno. A imagem de Goldstein aparece diariamente nas telas de TV da Oceania como parte do ritual diário da nação, os “Dois Minutos de Ódio”. E, sem a intervenção do estado, Goldstein, assim como bin Laden, vai te matar. Todos os excessos são justificáveis na luta titânica contra o diabo personificado.

A tortura psicológica do cabo Bradley Manning — que está preso há sete meses sem condenação por qualquer crime — espelha o dissidente Winston Smith de 1984. Manning é um “detido de segurança máxima” na cadeia da base dos Fuzileiros Navais de Quantico, na Virginia. Eles passa 23 das 24 horas do dia sozinho. Não pode se exercitar. Não pode usar travesseiro ou roupa de cama. Médicos do Exército enchem Manning de antidepressivos. As formas cruas de tortura da Gestapo foram substituídas pelas técnicas refinadas de Orwell, desenvolvidas por psicólogos do governo, para tornar dissidentes como Manning em vegetais. Quebramos almas e corpos. É mais eficaz. Agora todos podemos ir ao temido quarto 101 de Orwell para nos tornarmos obedientes e mansos.

Essas “medidas administrativas especiais” são regularmente impostas em nossos dissidentes, inclusive em Syed Fahad Hasmi, que ficou preso sob condições similares durante três anos antes do julgamento. As técnicas feriram psicologicamente milhares de detidos em nossas cadeias secretas em todo o mundo. Elas são o exemplo da forma de controle em nossas prisões de segurança máxima, onde o estado corporativo promove a guerra contra nossa sub-classe política – os afro-americanos. É o presságio da mudança de Huxley para Orwell.

“Nunca mais você será capaz de ter um sentimento humano”, o torturador de Winston Smith diz a ele em 1984.”Tudo estará morto dentro de você. Nunca mais você será capaz de amar, de ter amigos, do prazer de viver, do riso, da curiosidade, da coragem ou integridade. Você será raso. Vamos te apertar até esvaziá-lo e vamos encher você de nós”.

O laço está apertando. A era do divertimento está sendo substituída pela era da repressão. Dezenas de milhões de cidadãos tiveram seus dados de e-mail e de telefone entregues ao governo. Somos a cidadania mais monitorada e espionada da história humana. Muitos de nós temos nossa rotina diária registrada por câmeras de segurança. Nossos hábitos ficam gravados na internet. Nossas fichas são geradas eletronicamente. Nossos corpos são revistados em aeroportos e filmados por scanners. Anúncios públicos, selos de inspeção e posters no transporte público constantemente pedem que relatemos atividade suspeita. O inimigo está em toda parte.

Aqueles que não cumprem com os ditames da guerra contra o terror, uma guerra que, como Orwell notou, não tem fim, são silenciados brutalmente. Medidas draconianas de segurança foram usadas contra protestos no G-20 em Pittsburgh e Toronto de forma desproporcional às manifestações de rua. Mas elas mandaram uma mensagem clara — NÃO TENTE PROTESTAR. A investigação do FBI contra ativistas palestinos e que se opõem à guerra, que em setembro resultou em buscas em casas de Minneapolis e Chicago, é uma demonstração do que espera aqueles que desafiam o Newspeak oficial. Os agentes — ou a Polícia do Pensamento — apreenderam telefones, computadores, documentos e outros bens pessoais. Intimações para aparecer no tribunal já foram enviadas a 26 pessoas. As intimações citam leis federais que proíbem “dar apoio material ou recursos para organizações terroristas estrangeiras”. O Terror, mesmo para aqueles que não tem nada a ver com terror, se torna o instrumento usado pelo Big Brother para nos proteger de nós mesmos.

“Você está começando a entender o mundo que estamos criando?”, Orwell escreveu. “É exatamente o oposto daquelas Utopias estúpidas que os velhos reformistas imaginaram. Um mundo de medo, traição e tormento, um mundo em que se atropela e se é atropelado, um mundo que, ao se sofisticar, vai se tornar cada vez mais cruel”.

Fonte: Viomundo

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A democracia em declínio e os tambores da guerra

capitalismo 7

Desarmados pelas finanças, governos veem-se impotentes, desgastam-se com rapidez, são derrotados. Espalha-se uma tentação: e se saída estiver no ódio ao outro e nas armas?

Por Immanuel Wallerstein | Tradução: Inês Castilho | Imagem: Alex Cherry

Foi um mau ano para os partidos no poder que enfrentaram eleições. Eles vêm sofrendo derrotas completas ou ao menos relativas. O foco tem se voltado para as eleições em que os chamados partidos de direita saem-se melhor — às vezes, muito melhor — que partidos no poder considerados de esquerda. Exemplos notáveis são Argentina, Venezuela e Dinamarca. Talvez possa-se acrescentar os Estados Unidos.

Menos comentada tem sido a situação opostas: partidos no poder que são “de direita” perdendo para forças de esquerda ou, ao menos, reduzindo seu percentual e número de cadeiras em plano nacional e ou local. Isso é verdade, de distintas maneiras, no Canadá, Austrália, Espanha, Portugal, Holanda, Itália e Índia.

O problema talvez não sejam os programas implementados pelos partidos, mas o fato de que os partidos no poder estão sendo culpados pela má situação das economias. Uma reação que vimos em quase todo lugar é o populismo xenófobo, de direita. Outra reação é demandar mais — e não menos — medidas do Estado de bem-estar social, conhecidas como “anti-austeridade”. Claro, é possível ser xenófobo e anti-austeridade ao mesmo tempo.

Mas quando um partido chega ao poder e precisa governar, espera-se que faça diferença na vida de quem o elegeu. E se não consegue fazê-lo, pode enfrentar reação severa nas eleições futuras, muitas vezes num breve prazo de tempo. É o que o primeiro ministro Modi, da Índia, aprendeu quando, menos de um ano depois de uma eleição nacional arrebatadora, seu partido teve mau desempenho nas eleições provinciais de Nova Deli e Bihar, onde acabara de vencer.

Não penso que essa volatilidade vá acabar tão cedo. A razão é bastante simples. Os mantras neoliberais de crescimento e competitividade não são capazes de reduzir significativamente os níveis de desemprego. Como resultado, podem forçar a transferência de riqueza dos estratos mais baixos para os mais ricos. Isso é muito visível e é o que leva à denúncia dos programas de austeridade.

A reação xenófoba responde a uma necessidade psíquica, mas não leva à elevação do nível de emprego, e portanto também não ao aumento da renda real. Os eleitores podem então retirar esses partidos do poder, como podem aqueles que lutam por objetivos de esquerda, como a elevação dos impostos pagos pelos muito ricos. Por sua vez, os governos – de esquerda, centro ou direita – têm menos dinheiro para as medidas de proteção social.

A combinação desses elementos não é muito negativa apenas para aqueles que se encontram na base da pirâmide de renda. Significa também o chamado declínio da classe média – ou seja, a queda de muitas famílias para as fileiras dos estratos mais baixos. Note-se, porém, que o modelo de eleições parlamentares disputadas basicamente por dois partidos mainstream é baseado na existência de um estrato de classe média numericamente grande, pronto para deslocar seus votos leve e calmamente entre dois partidos de centro, bastante semelhantes. Sem esse modelo funcionando, o sistema político torna-se imprevisível, tal como estamos vendo agora.

Acabo de descrever a cena intra-Estados. Mas há também a cena inter-Estados – o poder global relativo dos diferentes Estados. Assim como deve-se olhar para os níveis reais de emprego dentro de cada Estado, as taxas de câmbio entre as moedas são a chave para avaliar o poder entre Estados. O dólar mantém-se no topo, principalmente porque não há nenhuma boa alternativa no curto prazo. Contudo, a moeda norte-americana não é estável, e está também sujeito a mudanças súbitas e voláteis, assim como a um declínio relativo, no longo prazo.

Taxas de câmbio caóticas significam que resta uma última solução, extremamente perigosa, para reforçar o poder relativo entre Estados: a guerra. A guerra é ao mesmo tempo intimidadora e remuneradora no curto prazo, ainda que seja devastadora humanamente e leve à exaustão, no longo prazo. De modo que, quando os Estados Unidos debatem como perseguir seus interesses na Síria ou no Afeganistão, é muito forte a pressão para ampliar o envolvimento militar, ao invés de reduzi-lo.

Não é, em suma, um cenário bonito. A questão, para os partidos políticos, é que não é um bom tempo para realizar eleições. Alguns partidos no poder estão começando a julgar que não deveriam realizá-las, ou ao menos evitar eleições que sejam, ainda que marginalmente, competitivas.

Fonte: Outras Palavras

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Agamben: o flerte do Ocidente com o totalitarismo

liberdade segurança

Estado de Segurança: governos movimentam-se para restringir liberdades, atemorizar cidadãos e reduzi-los, enfim, à passividade. Isso nada tem a ver com “combate ao terrorismo”

Por Giorgio Agamben | Tradução Pedro Lucas Dulci

O estado de emergência não é um escudo que protege a democracia. Pelo contrário, ele sempre acompanhou as ditaduras e até forneceu um quadro jurídico para as atrocidades da Alemanha nazista. A França deve resistir à política do medo.

Não será possível compreender o verdadeiro problema da prorrogação do estado de emergência nesse país – até o final de fevereiro – se ele não for examinado no contexto de uma transformação radical do modelo de Estado que se tornou familiar. É preciso, acima de tudo, desmentir as palavras das mulheres e homens políticos irresponsáveis, segundo as quais o estado de emergência seria um escudo para a democracia.

Os historiadores estão bem conscientes de que o oposto é verdadeiro. O estado de emergência é precisamente o dispositivo pelo qual os poderes totalitários instalaram-se na Europa. Nos anos que antecederam a tomada do poder por Hitler, os governantes social-democratas da República de Weimar tinham recorrido tantas vezes ao estado de emergência (estado de exceção, como é chamado na Alemanha), que se pode dizer que esse país já tinha cessado, antes de 1933, de ser uma democracia parlamentar.

Mas o primeiro ato de Hitler, após a sua nomeação, foi proclamar de novo o estado de emergência, que nunca foi revogado. Quando nos surpreendemos com os crimes que foram cometidos com impunidade pelos nazistas na Alemanha, nos esquecemos de que essas ações eram perfeitamente legais, pois as liberdades individuais haviam sido suspensas.

Não está claro por que tal cenário não se repetiria na França. É possível imaginar sem dificuldade um governo de extrema-direita servir-se, para seus propósitos, de um estado de emergência a que os governos socialistas tornaram agora os cidadãos acostumados. Em um país que vive em uma emergência prolongada, e em que as operações policiais vão substituir gradualmente o Judiciário, devemos esperar uma deterioração rápida e irreversível das instituições públicas.

Isto é especialmente verdadeiro já que o estado de emergência faz parte do processo que atualmente faz com que as democracias ocidentais involuam para algo chamado Estado de Segurança (“Security State”, como dizem os cientistas políticos americanos). A palavra “segurança” entrou totalmente no discurso político e, pode-se dizer sem medo de errar, que as “razões de segurança” tomaram o lugar do que foi chamado anteriormente o “raison d’Etat” [razão de ser do Estado]. Uma análise desta nova forma de governo, no entanto, ainda está ausente. Como o Estado de Segurança não é nem o Estado de Direito, nem aquilo que Michel Foucault chamou de “sociedades disciplinares”, ele requer alguns marcos para uma possível definição.

No modelo do inglês Thomas Hobbes, que influenciou tão profundamente nossa filosofia política, o contrato que transfere para os poderes soberanos pressupõe medo mútuo da guerra de todos contra todos: o Estado é precisamente o que tem que acabar com o medo. No Estado de Segurança, esse padrão se inverte: o Estado é permanentemente fundamentado no medo e deve, a todo o custo, manter-se assim, uma vez que desse medo ele deriva a sua função essencial e legitimidade.

Foucault já havia mostrado que quando a palavra “segurança” aparece pela primeira vez na França no discurso político, com os governos fisiocratas de antes da Revolução, não foi para evitar desastres e fomes — mas para deixar que eles acontecessem para, em seguida, governar em um sentido que pensavam ser rentável.

Nenhum senso jurídico

Da mesma forma, a segurança em questão hoje não se destina a impedir atos de terrorismo (que também é algo extremamente difícil, se não impossível, uma vez que as medidas de segurança são eficazes apenas após o fato e o terrorismo é, por definição, uma série de primeiros disparos). Destina-se a estabelecer uma nova relação com os homens, que é a de um controle generalizado e ilimitado – daí a ênfase particular em dispositivos que permitem o controle completo de dados informáticos e de comunicação dos cidadãos, incluindo o direito de remoção integral do conteúdo de computadores.

 

O risco que primeiramente enfrentamos é a tendência à criação de uma relação sistêmica entre o terrorismo e segurança do Estado. Se o Estado precisa legitimar o medo, é preciso, em última análise, produzir terror, ou, pelo menos, não impedir que ele ocorra. É por isso que muitos países adotam uma política externa que alimenta o terrorismo — o qual dizem combater em seu interior — e manter relações cordiais, ou até mesmo vender armas, a Estados conhecidos para financiar organizações terroristas.

Um segundo ponto a notar é a mudança do estatuto político dos cidadãos e do povo, que deveria ser o titular da soberania. No Estado de Segurança, há uma tendência irrepreensível ao que só pode ser chamado de uma despolitização progressiva dos cidadãos, cuja participação na política é reduzida às urnas. Esta tendência é particularmente preocupante e até havia sido teorizado por juristas nazistas, definindo o povo como elemento essencialmente apolítico, cujo Estado deve garantir a proteção e o crescimento.

No entanto, de acordo com os juristas, só há uma maneira de tornar político este elemento impolítico: pela igualdade de descendência e de raça, que irá distingui-lo do estrangeiro e do inimigo. Isto não significa confundir o Estado nazista com o Estado de Segurança contemporâneo: o que se precisa entender é que, ao se despolitizar os cidadãos, eles não poderão sair de sua passividade, uma vez que eles são mobilizados pelo medo contra um inimigo estrangeiro que não seja somente externo (como no caso dos judeus na Alemanha ou, agora, com os muçulmanos na França).

É neste contexto que devemos considerar o sinistro projeto de privação da nacionalidade de cidadãos binacionais, que relembra a lei fascista de 1926 sobre a desnacionalização dos “cidadãos indignos da cidadania italiana” e leis nazistas na desnacionalização dos judeus.

Um terceiro ponto, cuja importância não devemos subestimar, é a transformação radical dos critérios que estabelecem a verdade e a certeza na esfera pública. Registra-se, acima de tudo, a um observador atento às atas de crimes de terrorismo, a renúncia total do estabelecimento da certeza jurídica.

Enquanto compreende-se, em um Estado de direito, que um crime só pode ser comprovado por um inquérito judicial, sob o paradigma de segurança devemos nos contentar com o que dizem polícia e os meios de comunicação que dela dependem – ou seja, duas instâncias que sempre foram considerados pouco confiáveis. Daí as imprecisões incríveis e as contradições patentes nas reconstruções apressadas de eventos, que conscientemente iludem qualquer possibilidade de verificação e falsificação e que mais se parecem com fofocas do que com inquéritos. Isto significa que o Estado de Segurança tem um interesse em que os cidadãos – cuja proteção ele deve assegurar – permaneçam sem saber  o que os ameaça, pois incerteza e medo andam juntos.

A mesma incerteza que se encontra no texto da lei de 20 de Novembro sobre o estado de emergência, que se refere a “qualquer pessoa em relação à qual haja razões sérias para considerar que o seu comportamento é uma ameaça à ordem pública e à segurança”. É bastante óbvio que a frase “razões sérias para considerar” não tem nenhum significado jurídico e, como refere-se à arbitrariedade de quem “considera”, pode ser aplicada a qualquer momento e contra qualquer um. No Estado de Segurança, essas formas indeterminadas, que foram sempre consideradas pelos advogados como contrárias ao princípio da segurança jurídica, tornam-se a norma.

Despolitização dos cidadãos

A mesma imprecisão e os mesmos equívocos retornam nas declarações de mulheres e homens políticos, segundo os quais a França estaria em guerra contra o terrorismo. A guerra contra o terrorismo é uma contradição em termos, porque o estado de guerra é definido precisamente pela capacidade de identificar com certeza o inimigo com o qual se deve lutar. Na perspectiva securitária, o inimigo deve – pelo contrário – permanecer vago, no interior, mas também no exterior, de modo que qualquer um possa ser identificado como tal.

A manutenção de um estado de medo generalizado, a despolitização dos cidadãos, a renúncia à efetividade da lei: essas três características do Estado de Segurança, que bastam para perturbar os espíritos. Porque isso significa, em primeiro lugar, que o Estado de Segurança para o qual estamos escorregando faz o oposto do que ele promete. A segurança significa falta de preocupação (sine cura) –, enquanto ele mantém o medo e o terror. O Estado de Segurança é, por outro lado, um Estado policial, porque pelo eclipse do Poder Judiciário, ele generaliza a margem discricionária do polícia, a qual, em um estado de emergência constante, torna-se cada vez mais soberana.

A despolitização gradual dos cidadãos, de alguma forma os transforma em terroristas em potencial; o Estado de Segurança, finalmente se lançou do campo conhecido da política, para se dirigir a uma zona incerta, onde o público e o privado se confundem, e onde é difícil definir as fronteiras.

Fonte: Outras Palavras

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