Boaventura: crise da política e futuro da esquerda

Diante dos riscos de barbárie, agora presentes em toda parte, voltam a surgir iniciativas inovadoras. Terão êxito? Como evitar repetição de erros trágicos?

podemos espanha ada colau pablo iglesias

 

Pablo Iglesias, líder do Podemos espanhol, e Ada Colau, prefeita de Barcelona. Para Boaventura, são “a melhor expressão da presença das inovações latino-americanas na nova esquerda europeia”

 

Por Boaventura de Sousa Santos

O futuro da esquerda não é mais difícil de prever que qualquer outro facto social. A melhor maneira de o abordar é fazer o que designo por sociologia das emergências. Consiste esta em dar atenção especial a alguns sinais do presente por ver neles tendências ou embriões do que pode vir a ser decisivo no futuro. Neste texto, dou especial atenção a um fato que, por ser incomum, pode sinalizar algo de novo e importante. Refiro-me aos pactos entre diferentes partidos de esquerda.

Os Pactos

A família das esquerdas não tem uma forte tradição de pactos. Alguns ramos desta família têm mais tradição de pactos com a direita do que com outros ramos da família. Dir-se-ia que as divergências internas na família das esquerdas são parte do seu código genético, tão constantes têm sido ao longo dos últimos duzentos anos. Por razões óbvias, as divergências têm sido mais extensas ou mais notórias em democracia. A polarização vai por vezes ao ponto de um ramo da família não reconhecer sequer que o outro ramo pertence à mesma família. Pelo contrário, em períodos de ditadura têm sido frequentes os entendimentos, ainda que terminem mal termina o período ditatorial. À luz desta história, merece uma reflexão o facto de em tempos recentes termos vindo assistir a um movimento pactista entre diferentes ramos das esquerdas em países democráticos. A Europa do Sul é um bom exemplo: a unidade em volta do Syriza na Grécia, apesar de todas as vicissitudes e dificuldades; o governo liderado pelo Partido Socialista em Portugal com o apoio do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda no rescaldo das eleições de 4 de Outubro de 2015; alguns governos autonômicos em Espanha, saídos das eleições de 2015 e, no momento em que escrevo, a discussão sobre a possibilidade de um pacto a nível nacional entre o Partido Socialista, o Podemos e outros partidos de esquerda em resultado das eleições legislativas de 6 de dezembro de 2015. Há sinais de que noutros espaços da Europa e na América Latina possam vir a surgir num futuro próximo pactos semelhantes. Duas questões se impõem. Porquê este impulso pactista em democracia? Qual a sua sustentabilidade?

A agressividade da direita é tão devastadora
que as forças de esquerda começam a perceber:
ditaduras do século XXI surgirão
como democracias de baixíssima intensidade

A primeira pergunta tem uma resposta plausível. No caso da Europa do Sul, a agressividade da direita no poder nos últimos cinco anos (tanto a nacional, como a que veste a pele das “instituições europeias”) foi tão devastadora para os direitos de cidadania e para a credibilidade do regime democrático que as forças de esquerda começam a ficar convencidas de que as novas ditaduras do século XXI vão surgir sob a forma de democracias de baixíssima intensidade. Serão ditaduras que se apresentam como ditamoles ou democraduras: a governabilidade possível ante a iminência do suposto caos nos tempos difíceis que vivemos, o resultado técnico dos imperativos do mercado e da crise que explica tudo sem precisar de ser, ela própria, explicada. O pacto resulta de uma leitura política de que o que está em causa é a sobrevivência de uma democracia digna do nome e de que as divergências sobre o que tal significa têm agora menos premência do que salvar o que a direita ainda não conseguiu destruir.

A segunda pergunta é mais difícil de responder. Como dizia Espinosa, as pessoas (e eu diria, também as sociedades) regem-se por duas emoções fundamentais: o medo e a esperança. O equilíbrio entre elas é complexo mas precisamos das duas para sobreviver. O medo domina quando as expectativas de futuro são negativas (“isto está mau mas o futuro pode ser pior”); por sua vez, a esperança domina quando as expectativas de futuro são positivas ou quando, pelo menos, o inconformismo com a suposta fatalidade das expectativas negativas é amplamente partilhado. Trinta anos depois do assalto global aos direitos dos trabalhadores; da promoção da desigualdade social e do egoísmo como máximas virtudes sociais; do saque sem precedentes dos recursos naturais e da expulsão de populações inteiras do seus territórios e da destruição ambiental que isso significa; do fomentar da guerra e do terrorismo para criar Estados falidos e tornar as sociedades indefesas perante a espoliação; da imposição mais ou menos negociada de tratados de livre comércio totalmente controlados pelos interesses das empresas multinacionais; da supremacia total do capital financeiro sobre o capital produtivo e sobre vida das pessoas e das comunidades – depois de tudo isto, combinado com a defesa hipócrita da democracia liberal, é plausível concluir que o neoliberalismo é uma máquina imensa de produção de expectativas negativas para que as classes populares não saibam as verdadeiras razões do seu sofrimento, se conformem com o pouco que ainda têm e sejam paralisadas pelo pavor de o perder.

Constituição e Hegemonia

O movimento pactista no interior das esquerdas é o produto de um tempo, o nosso, de predomínio absoluto do medo sobre a esperança. Significará isto que os governos saídos dos pactos serão vítimas do seu êxito? O êxito dos governos pactuados à esquerda irá traduzir-se na atenuação do medo e no devolver de alguma esperança às classes populares, ao mostrar, por via de uma governação pragmática e inteligente, que o direito a ter direitos é uma conquista civilizacional irreversível. Será que, no momento em que voltar a luzir a esperança, as divergências voltarão à superfície e os pactos serão deitados para o lixo? Se tal acontecer, isso será fatal para as classes populares, que rapidamente voltarão ao silenciado desalento perante um fatalismo cruel, tão violento para as grandes maiorias quanto benévolo para as pequeníssimas minorias. Mas será também fatal para as esquerdas no seu conjunto, porque ficará demonstrado durante algumas décadas que as esquerdas são boas para remendar o passado mas não para construir o futuro. Para que tal não aconteça, dois tipos de medidas têm de ser levadas a cabo durante a vigência dos pactos. Duas medidas que não se impõem pela urgência da governação corrente e que, por isso, têm de resultar de vontade política bem determinada. Chamo às duas medidas: Constituição e hegemonia.

Primeira tarefa: reformas que ampliem a democracia,
acabem com o monopólio dos partidos, garantam direitos sociais e nos preparem para futuros embates contra o projeto elitista da ditamole

A Constituição é o conjunto de reformas constitucionais ou infraconstitucionais que reestruturam o sistema político e as instituições de maneira a prepará-los para possíveis embates com aditamole e o projeto de democracia de baixíssima intensidade que ela traz consigo. Consoante os países, as reformas serão diferentes, como serão diferentes os mecanismos utilizados. Se nalguns casos é possível reformar a Constituição com base nos parlamentos, noutros será necessário convocar Assembleias Constituintes originárias, dado que os parlamentos seriam o obstáculo maior a qualquer reforma constitucional. Pode também acontecer que, num certo contexto, a “reforma” mais importante seja a defesa ativa da Constituição existente mediante uma renovada pedagogia constitucional em todas as áreas de governação. Mas haverá algo comum a todas as reformas: tornar o sistema eleitoral mais representativo e mais transparente; reforçar a democracia representativa com a democracia participativa.

Os mais influentes teóricos liberais da democracia representativa reconheceram (e recomendaram) a coexistência ambígua entre duas ideias (contraditórias) que garantem a estabilidade democrática: por um lado, a crença dos cidadãos na sua capacidade e competência para intervir e participar ativamente na política; por outro, um exercício passivo dessa competência e dessa capacidade mediante a confiança nas elites governantes. Em tempos recentes, e como mostram os protestos que abalaram muitos países a partir de 2011, a confiança nas elites tem vindo a deteriorar-se sem que, no entanto, o sistema político (pelo seu desenho ou pela sua prática) permita aos cidadãos recuperar a sua capacidade e competência para intervir ativamente na vida política. Sistemas eleitorais enviesados, partidocracia, corrupção, crises financeiras manipuladas – eis algumas das razões para a dupla crise de representação (“não nos representam”) e de participação (“não merece a pena votar, são todos iguais e nenhum cumpre o que promete”). As reformas constitucionais visarão um duplo objetivo: tornar a democracia representativa mais representativa; complementar a democracia representativa com a democracia participativa. De tais reformas resultará que a formação da agenda política e o controlo do desempenho das políticas públicas deixam de ser um monopólio dos partidos e passam a ser partilhados pelos partidos e por cidadãos independentes organizados democraticamente para o efeito.

O segundo conjunto de reformas é o que designo por hegemonia. Hegemonia é o conjunto de ideias sobre a sociedade e interpretações do mundo e da vida que, por serem altamente partilhadas, inclusivamente pelos grupos sociais que são prejudicados por elas, permitem que as elites políticas, ao apelarem para tais ideias e interpretações, governem mais por consenso do que por coerção, mesmo quando governam contra os interesses objetivos de grupos sociais maioritários. A ideia de que os pobres são pobres por culpa própria é hegemônica quando é defendida, não apenas pelos ricos, mas também pelos pobres e pelas classes populares em geral. Nesse caso são, por exemplo, menores os custos políticos das medidas que visam eliminar ou restringir drasticamente o rendimento social de inserção.

As aprendizagens globais

A luta pela hegemonia das ideias de sociedade que sustentam o pacto entre as esquerdas é fundamental para a sobrevivência e consistência desse pacto. Essa luta trava-se na educação formal e na promoção da educação popular, nos mídia, no apoio aos mídia alternativos, na investigação científica, na transformação curricular das universidades, nas redes sociais, na atividade cultural, nas organizações e movimentos sociais, na opinião pública e na opinião publicada. Através dela, constroem-se novos sentidos e critérios de avaliação da vida social e da ação política ( a imoralidade do privilégio, da concentração da riqueza e da discriminação racial e sexual; a promoção da solidariedade, dos bens comuns e da diversidade cultural social e econômica; a defesa da soberania e da coerência das alianças políticas; a proteção da natureza) que tornam mais difícil a contra-reforma dos ramos reacionários da direita, os primeiros a irromper num momento de fragilidade do pacto. Para que esta luta tenha êxito é preciso impulsionar políticas que, a olho nu, são menos urgentes e menos compensadoras. Se tal não ocorrer, a esperança não sobreviverá ao medo.

Na América Latina, governos de esquerda não enfrentaram nem questão da Constituição, nem da hegemonia.  No caso do Brasil, isso é ainda mais dramático e ameaça todos os avanços da última década

Se algo se pode afirmar com alguma certeza sobre as dificuldades por que estão a passar as forças progressistas na América Latina é que elas assentam no facto de os seus governos não terem enfrentado nem a questão da Constituição nem a questão da hegemonia. No caso do Brasil, este fato é particularmente dramático. Ele explica em parte que os enormes avanços sociais dos governos da era Lula sejam agora tão facilmente reduzidos a meros expedientes populistas e oportunistas, inclusivamente por parte daqueles que deles beneficiaram. Explica também que os muitos erros que cometeram ( foram muitos, a começar pela desistência da reforma política e da regulação dos mídia, e alguns erros deixam feridas abertas em grupos sociais importantes, tão diversos quanto os camponeses sem terra nem reforma agrária, os jovens negros vítimas do racismo, os povos indígenas ilegalmente expulsos dos seus territórios ancestrais, povos indígenas e quilombolas com reservas homologadas mas engavetadas, militarização das periferias das grandes cidades, populações rurais envenenadas por agrotóxicos, etc) não sejam considerados erros, passem em claro e até sejam convertidos em virtudes políticas ou, pelo menos, sejam aceites como consequências inevitáveis de uma governação realista e desenvolvimentista.

As tarefas não cumpridas da Constituição e da hegemonia explicam ainda que a condenação da tentação capitalista por parte dos governos de esquerda se centre na corrupção e, portanto, na imoralidade e na ilegalidade do capitalismo e não na injustiça sistemática de um sistema de dominação que se pode realizar em perfeito cumprimento da legalidade e da moralidade capitalistas.

A análise das consequências da não resolução das questões da Constituição e da hegemonia é relevante para prever e prevenir o que se pode passar nas próximas décadas, não só na América Latina, como também na Europa e noutras regiões do mundo. Entre as esquerdas latino-americanas e da Europa do Sul tem havido nos últimos vinte anos canais de comunicação importantes que estão ainda por analisar em todas as suas dimensões. Desde o início do orçamento participativo em Porto Alegre (1989), várias organizações de esquerda na Europa, Canadá e Índia (são estas as de que tenho conhecimento) começaram a dar muita atenção às inovações políticas que emergiam no campo das esquerdas em vários países da América Latina. A partir do final da década de 1990, com a intensificação das lutas sociais, a subida ao poder de governos progressistas e as lutas por Assembleias Constituintes, sobretudo no Equador e na Bolívia, tornou-se claro que uma profunda renovação da esquerda estava em curso e da qual havia muito que aprender.

Os traços principais dessa renovação eram os seguintes: a democracia participativa articulada com a democracia representativa, uma articulação de que ambas saiam fortalecidas; o intenso protagonismo de movimentos sociais de que o Fórum Social Mundial de 2001 foi uma mostra eloquente; uma nova relação entre partidos e movimentos sociais; a entrada saliente na vida política de grupos sociais até então considerados residuais, nomeadamente camponeses sem terra, povos indígenas e povos afro-descendentes; a celebração da diversidade cultural, o reconhecimento do caráter plurinacional dos países e o propósito de enfrentar as insidiosas heranças coloniais sempre presentes. Este elenco é suficiente para evidenciar o quanto as duas lutas a que me tenho estado a referir (a Constituição e a hegemonia) estavam presentes neste vasto movimento que parecia refundar para sempre o pensamento e a prática de esquerda, não só na América Latina, como em todo o mundo.

A crise financeira e política, sobretudo a partir de 2011, e o movimento dos indignados foram os detonadores de novas emergências políticas de esquerda na Europa do Sul em que as lições da América Latina estavam bem presentes, sobretudo a nova relação partido-movimento, a nova articulação entre democracia representativa e democracia participativa, a reforma constitucional e, no caso da Espanha, a questão da plurinacionalidade. O partido espanhol Podemos representa melhor do que qualquer outro esta aprendizagem, ainda que os seus dirigentes tenham estado desde a primeira hora bem conscientes das diferenças substanciais entre o contexto político e geopolítico europeu e o latino-americano.

As esquerdas europeias aprenderam com as muitas inovações das esquerdas latino-americanas. Mas estas “esqueceram”  suas próprias criações e caíram nas armadilhas da velha política, onde são facilmente batidas

O modo como essas aprendizagens se vão plasmar no novo ciclo político que está a emergir na Europa do Sul é, por agora, uma incógnita. mas desde já é possível especular o seguinte. Se é verdade que as esquerdas europeias aprenderam com as muitas inovações das esquerdas latino-americanas, não é menos verdade (e trágico) que estas se “esqueceram” das suas próprias inovações e que, de uma ou de outra forma, caíram nas armadilhas da velha política onde as forças de direita facilmente mostram a sua superioridade dada a longa experiência histórica acumulada.

Se as linhas de comunicação se mantêm nos dias de hoje, e sempre salvaguardando a diferenças dos contextos, talvez seja tempo de as esquerdas latino-americanas aprenderem com as inovações que estão a emergir entre as esquerdas da Europa do Sul. Entre elas saliento as seguintes: manter viva a democracia participativa dentro dos próprios partidos de esquerda como condição prévia à sua adoção no sistema político nacional em articulação com a democracia representativa; pactos entre forças de esquerda (não necessariamente apenas partidos) e nunca com forças de direita; pactos pragmáticos não clientelistas (não se discutem pessoas ou postos de governo mas políticas e medidas de governação), nem de rendição (articulando linhas vermelhas que não podem ser ultrapassadas com a noção de prioridades, ou, como se dizia dantes, distinguindo as lutas primárias das secundárias); insistência na reforma constitucional para blindar os direitos sociais e tornar o sistema político mais transparente, mais próximo e mais dependente de decisões cidadãs sem ter de esperar por eleições de quatro em quatro anos (reforço do referendum); e, no caso espanhol, tratar democraticamente a questão da plurinacionalidade.

A máquina fatal do neoliberalismo continua a produzir medo em larga escala e, sempre que falta matéria prima, ceifa a esperança que pode encontrar nos recessos mais recônditos da vida política, social das classes populares, tritura-a, processa-a e transforma-a em medo do medo. As esquerdas são a areia que pode emperrar essa engrenagem majestática de modo a abrir as brechas por onde a sociologia das emergências fará o seu trabalho de formular e amplificar as tendências, os “ainda não”, que apontam para um futuro digno para as grandes maiorias. Para isso, é preciso que as esquerdas saibam ter medo sem ter medo do medo. Saibam furtar rebentos de esperança à trituração neoliberal e plantá-los em terrenos férteis onde cada vez mais cidadãos sintam que podem viver bem, protegidos, tanto do inferno do caos iminente, como do paraíso das sirenes do consumo obsessivo. Para que isto aconteça, a condição mínima é que as esquerdas permaneçam firmes nas duas lutas fundamentais, a Constituição e a hegemonia.

F0nte : Outras Palavras

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Löwy: quando Capitalismo não rima com Democracia

mickey bansky

Para pensamento político tradicional, dois conceitos são complementares. Mas Europa demonstra algo que Max Weber já intuia: liberdade não pode florescer sob leis de mercado

Por Michael Löwy | Tradução: Gabriela Leite

Vamos começar com uma citação de um ensaio sobre a democracia burguesa na Rússia, escrita em 1906, após a derrota da primeira revolução, de 1905:

“É profundamente ridículo acreditar que existe uma afinidade eletiva entre o grande capitalismo, da maneira como atualmente é importado para a Rússia, e bem estabelecido nos Estados Unidos (…), e a ‘democracia’ ou ‘liberdade’ (em todos os significados possíveis da palavra); a questão verdadeira deveria ser: como essas coisas podem ser mesmo ‘possíveis’, a longo prazo, sob a dominação capitalista?” [1]

Quem é o autor deste comentário perspicaz? Lenin, Trotsky ou, talvez, Plekhanov? Na verdade, ele foi feito por Max Weber, o conhecido sociólogo burguês. Apesar de Weber nunca ter desenvolvido essa ideia, ele está sugerindo aqui que existe uma contradição intrínseca entre o capitalismo e a democracia.

A historia do século XX parece confirmar essa opinião: em muitos momentos, quando o poder da classe dominante pareceu ameaçado pelo povo, a democracia foi jogada de lado como um luxo que não pode ser mantido, e substituída pelo fascismo — na Europa, nos anos 1920 e 1930 — ou por ditaduras militares, como na América Latina, entre os anos 1960 e 1970.

Por sorte, esse não é o caso da Europa atual, mas temos, particularmente nas últimas décadas, com o triunfo do neoliberalismo, uma democracia de baixa intensidade, sem conteúdo social, que se reduziu a uma concha vazia. É claro que ainda temos eleições, mas elas parecem ser de apenas um partido, o PMU, Partido do Mercado Unido, com duas variantes que apresentam diferenças limitadas: a versão de direita neoliberal e a de centro-esquerda social liberal.

O declínio da democracia é particularmente visível no funcionamento oligárquico da União Europeia, onde o Parlamento Europeu tem muito pouca influência, enquanto o poder está firmemente nas mãos de corpos não eleitos, como a Comissão Europeia ou o Banco Central Europeu. De acordo com Giandomenico Majone, professor do Instituto Europeu de Florença, e um dos teóricos semioficiais da UE, a Europa precisa de “instituições não-majoritárias”. Ou seja, “instituições públicas que, propositalmente, não sejam responsáveis nem diante dos eleitores, nem de seus representantes eleitos”: essa é a única maneira de nos proteger contra “a tirania da maioria”. Em tais instituições, “qualidades tais quais expertise, discrição profissional e coerência (…) são muito mais importantes que a responsabilidade democrática e direta” [2]. Seria difícil imaginar uma desculpa mais descarada da natureza oligárquica e antidemocrática da UE.

Com a crise atual, a democracia decaiu a seus níveis mais baixos. Em um recente editorial, o jornal francês Le Figaro escreveu que a situação é excepcional, e explica por que os procedimentos democráticos não podem ser sempre respeitados; apenas quando voltarmos aos tempos normais, poderemos restabelecer sua legitimidade. Temos, então, um tipo de “estado de exceção” econômico/político, no sentido que descreveu Carl Schmitt. Mas quem é o soberano que tem o direito de proclamar, de acordo com Schmitt, o estado de exceção?

Por algum tempo, entre 1789 e a proclamação da República Francesa, em 1792, o rei teve o direito constitucional de veto. Não importavam as resoluções da Assembleia Nacional, ou quaisquer que fossem os desejos e aspirações do povo francês: a última palavra pertencia a Sua Majestade.

Na Europa de hoje, o rei não é um Bourbon ou Habsburgo: o rei é o Capital Financeiro. Todos os atuais governos europeus — com a exceção do grego! — são funcionários deste monarca absolutista, intolerante e anti-democrático. Quer sejam de direita, “extremo-centro” ou pseudoesquerda, quer sejam conservadores, democratas cristãos ou social-democratas, eles servem fanaticamente ao poder de veto de Sua Majestade.

O soberano absoluto e total hoje, na Europa, é, no entanto, o mercado financeiro global. Os mercados financeiros ditam a cada país os salários e aposentadorias, os cortes em despesas sociais, as privatizações, a taxa de desemprego. Há algum tempo, eles nomeavam diretamente os chefes de governo (Lucas Papademos na Grécia e Mario Monti na Itália), escolhendo os chamados “experts”, que eram servos fiéis.

Vamos olhar mais atentamente a alguns desses tais todos-poderosos “experts”. De onde eles vêm? Mario Draghi, chefe do Banco Central Europeu, é um antigo administrador do banco internacional de investimentos Goldman Sachs; Mario Monti, ex Comissário Europeu, também é um antigo conselheiro da Goldman Sachs. Monti e Papademos são membros da Comissão Trilateral, um clube muito seleto de políticos e banqueiros que discutem estratégias internacionais. O presidente desta comissão é Peter Sutherland, antigo Comissário Europeu, e antigo administrador no Goldman Sachs; o vice-presidente, Vladimir Dlouhr, antigo Ministro da Economia tcheco, é agora conselheiro na Goldman Sachs para a Europa Oriental. Em outras palavras, os “experts” que comandam a “salvação” da Europa da crise foram funcionários de um dos bancos diretamente responsáveis pela crise financeira iniciada nos Estados Unidos, em 2008. Isso não significa que existe uma conspiração para entregar a Europa à Goldman Sachs: apenas ilustra a natureza oligárquica dos “experts” de elite que comandam a UE.

Os governos da Europa estão indiferentes aos protestos públicos, greves e manifestações maciças. Não se importam com a opinião ou os sentimentos da população; estão apenas atentos — extremamente atentos — à opinião e sentimentos dos mercados financeiros e seus funcionários, as agências de avaliação de risco. Na pseudodemocracia europeia, consultar o povo em um referendo é uma heresia perigosa, ou pior, um crime contra o Deus Mercado. O governo grego, liderado pelo Syriza, a Coalizão da Esquerda Radical, foi o único que teve coragem para organizar tal consulta popular.

O referendo grego não tinha apenas a ver com questões fundamentais econômicas e sociais, foi também e acima de tudo sobre democracia. Os 61,3% de gregos que disseram não são uma tentativa de desafiar o veto real das finanças. Esse poderia ter sido o primeiro passo em direção à transformação da Europa, de monarquia capitalista a república democrática. Mas as atuais instituições da oligarquia europeia têm pouca tolerância à democracia. Imediatamente puniram o povo grego por sua tentativa insolente de recusar a austeridade. A “catastroika” está de volta à Grécia com uma vingança, impondo um programa brutal de medidas economicamente recessivas, socialmente injustas e humanamente insustentáveis. A direita alemã fabricou este monstro, e forçou ao povo grego com a cumplicidade de falsos “amigos” da Grécia (entre outros, o presidente francês, François Hollande, e o primeiro-ministro da Itália Matteo Renzi).

* * *

Enquanto a crise agrava-se, e o ultraje público cresce, existe uma crescente tentação, por parte de muitos governos, de distrair a atenção pública para um bode expiatório: os imigrantes. Deste modo, estrangeiros sem documentos, imigrantes de países não-europeus, muçulmanos e ciganos estão sendo apresentados como a principal ameaça aos países. Isso abre, é claro, enormes oportunidades para partidos racistas, xenófobos, semi ou completamente fascistas, que estão crescendo, e já são, em muitos países, parte do governo — uma ameaça muito séria à democracia europeia.

A única esperança é a crescente aspiração por uma outra Europa, que vá além das políticas de competição selvagem e austeridade brutal, e das dívidas eternas a serem pagas. Outra Europa é possível — um continente democrático, ecológico e social. Mas não será alcançado sem uma luta comum das populações europeias, que ultrapasse as barreiras étnicas e os limites estreitos do Estado-nação. Em outras palavras, nossa esperança para o futuro é a indignação popular, e os movimentos sociais, que estão em ascensão, particularmente entre os jovens e mulheres, em muitos países. Para os movimentos sociais, está ficando cada vez mais óbvio que a luta pela democracia é contra o neoliberalismo e, em última análise, contra o próprio capitalismo, um sistema antidemocrático por natureza, como Max Weber já apontou, cem anos atrás.


[1] Max Weber, «Zur Lage der bürgerlichen Demokratie in Russland»,Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik,     Band 22, 1906, Beiheft, p. 353.

[2] Citado in Perry Anderson, Le Nouveau Vieux Monde, Marseile, Agone, 2011, pp. 154,158.

Fonte: Outras Palavras

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O governo dos banqueiros. Artigo de Jürgen Habermas

BANCOS ESPECULAÇÃO FOME ALIMENTOS

“São os cidadãos, não os banqueiros, que têm de dizer a última palavra sobre as questões que afetam o destino europeu”.

O comentário é de Jürgen Habermas, filósofo e escritor alemão em artigo publicado no jornal no El País, 28-06-2015. Habermas lembra que “a Alemanha deve o impulso inicial para sua decolagem econômica, do qual ainda se alimenta hoje, à generosidade dos países credores que no Tratado de Londres, de 1954, perdoaram mais ou menos a metade de suas dívidas”.

Segundo ele, “o acordo não está fracassando por causa de alguns bilhões a mais ou a menos, nem por causa de um ou outro imposto, mas unicamente porque os gregos exigem que a economia e a população explorada pelas elites corruptas tenham a possibilidade de voltar a funcionar através da quitação da dívida ou uma medida equivalente, como, por exemplo, uma moratória dos pagamentos vinculada ao crescimento”.

Eis o artigo.

A última sentença do Tribunal de Justiça Europeu [que permite ao Banco Central Europeu (BCE) comprar dívida soberana para combater a crise do euro] lança uma luz prejudicial sobre a falida construção de uma união monetária sem união política. No verão de 2012, todos os cidadãos tiveram que agradecer a Mario Draghi, presidente do BCE, que com uma só frase [“farei o necessário para sustentar o euro”] salvou a moeda das desastrosas consequências de um colapso que parecia iminente. Ele tirou do sufoco o Eurogrupo ao anunciar que, caso fosse preciso, compraria dívida pública em quantidade ilimitada. Draghi teve que dar um passo à frente porque os chefes de Governo eram incapazes de agir pelo interesse comum da Europa; todos estavam hipnotizados, prisioneiros de seus respectivos interesses nacionais.

Naquele momento, os mercados financeiros reagiram – diminuindo a tensão – diante de uma única frase, a frase com a qual o presidente do BCE simulou uma soberania fiscal que absolutamente não possuía. Porque agora, assim como antes, são os bancos centrais dos países-membros os que aprovam os créditos, em última instância. O Tribunal Europeu não pode referendar essa competição contrária ao texto literal dos tratados europeus; mas as consequências de sua sentença deixam implícito que o BCE, com escassas limitações, pode cumprir o papel de credor de última instância.

O tribunal abençoou um ato salvador que não obedece em nada à Constituição, e o Tribunal Constitucional alemão apoiará essa sentença acrescentando as sutilezas às quais estamos acostumados. Alguém poderia estar tentado a afirmar que os guardiões do direito dos tratados europeus se veem obrigados a aplicá-lo, ainda que indiretamente, para mitigar, caso a caso, as consequências indesejadas das falhas de construção da união monetária. Defeitos que só podem ser corrigidos mediante uma reforma das instituições, conforme juristas, cientistas políticos e economistas vêm demonstrando há anos. A união monetária continuará sendo instável enquanto não for complementada pela união bancária, fiscal e econômica. Mas isso significa – se não quisermos declarar abertamente que a democracia é um mero objeto decorativo – que a união monetária deve se desenvolver para se transformar em uma união política. Aqueles acontecimentos dramáticos de 2012 explicam por que Draghi nada contra a corrente de uma política míope – até mesmo insensata, eu diria.

Estamos outra vez em crise com Atenas porque, já em maio de 2010, a chanceler alemã se importava mais com os interesses dos investidores do que com quitar a dívida para sanar a economia grega. Neste momento, evidencia-se outro déficit institucional. O resultado das eleições gregas representa o voto de uma nação que se defende com uma maioria clara contra a tão humilhante e deprimente miséria social da política de austeridade imposta ao país. O próprio sentido do voto não se presta a especulações: a população rejeita a continuação de uma política cujo fracasso as pessoas já sentiram de forma drástica em suas próprias peles. De posse dessa legitimação democrática, o Governo grego tentou induzir uma mudança de políticas na zona do euro. E tropeçou em Bruxelas com os representantes de outros 18 Governos, que justificam sua recusa remetendo friamente a seu próprio mandato democrático.

Recordemos os primeiros encontros, quando os novatos – que se apresentavam de maneira prepotente motivados por sua vitória arrebatadora – ofereciam um grotesco espetáculo de troca de golpes com os residentes, que reagiam em parte de forma paternalista, em parte de forma desdenhosa e rotineira. Ambas as partes insistiam como papagaios que tinham sido autorizadas cada uma por seu respectivo “povo”. A comicidade involuntária desse estreito pensamento nacional-estatal expôs com grande eloquência, diante da opinião pública europeia, aquilo que realmente é necessário: formar uma vontade política comum entre os cidadãos em relação com as transcendentais fraquezas políticas no núcleo europeu.

As negociações para se chegar a um acordo em Bruxelas travam porque ambas as partes culpam a esterilidade de suas conversas não às falhas de construção de procedimentos e instituições, mas sim à má conduta de seus membros. O acordo não está fracassando por causa de alguns bilhões a mais ou a menos, nem por causa de um ou outro imposto, mas unicamente porque os gregos exigem que a economia e a população explorada pelas elites corruptas tenham a possibilidade de voltar a funcionar através da quitação da dívida ou uma medida equivalente, como, por exemplo, uma moratória dos pagamentos vinculada ao crescimento.

Os credores, por outro lado, não cedem no empenho para que se reconheça uma montanha de dívidas que a economia grega jamais poderá saldar. É indiscutível que a quitação da dívida será irremediável, a curto ou a longo prazo. No entanto, os credores insistem no reconhecimento formal de uma carga que, de fato, é impossível de ser paga. Até pouco tempo atrás, eles mantinham inclusive a exigência, literalmente fantástica, de um superávit primário superior a 4%. É verdade que essa demanda foi baixada para 1%, que tampouco é realista. Mas, até o momento, a tentativa de se chegar a um acordo, do qual depende o destino da União Europeia, fracassou por causa da exigência dos credores de sustentar uma ficção.

Naturalmente, os países doadores têm razões políticas para sustentá-la, já que no curto prazo isso permite adiar uma decisão desagradável. Temem, por exemplo, um efeito dominó em outros países devedores. E Angela Merkel também não está segura de sua própria maioria no Bundestag. Mas não há nenhuma dúvida quanto à necessidade de rever uma política equivocada à luz de suas consequências contraproducentes. Por outro lado, também não se pode culpar apenas uma das partes pelo desastre. Não posso julgar se há uma estratégia meditada por trás das manobras táticas do Governo grego, nem o que deve ser atribuído a imposições políticas, à inexperiência ou à incompetência dos negociadores. Essas circunstâncias difíceis não permitem explicar por que o Governo grego faz com que seja difícil até mesmo para seus simpatizantes discernir um rumo em seu comportamento errático.

Não se vê nenhuma tentativa razoável de construir coalizões; não se sabe se os nacionalistas de esquerda têm uma ideia um tanto etnocêntrica da solidariedade e impulsionam a permanência na zona do euro apenas por razões de astúcia, ou se sua perspectiva vai além do Estado-nação. A exigência de quitação da dívida não basta para despertar na parte contrária a confiança de que o novo Governo vá ser diferente, de que atuará com mais energia e responsabilidade do que os Executivos clientelistas aos quais substituiu. Tsipras e o Syriza poderiam ter desenvolvido o programa reformista de um Governo de esquerda e apresentá-lo a seus parceiros de negociação em Bruxelas e Berlim.

A discutível atuação do Governo grego não ameniza nem um pouco o escândalo de que os políticos de Bruxelas eBerlim se negam a tratar seus colegas de Atenas como políticos. Embora tenham a aparência de políticos, eles só falam em sua condição econômica de credores. Essa transformação em zumbis visa a apresentar a prolongada situação de insolvência de um Estado como um caso apolítico próprio do direito civil, algo que poderia levar à apresentação de ações ante um tribunal. Dessa forma, é muito mais fácil negar uma corresponsabilidade política.

Merkel fez o Fundo Monetário Internacional (FMI) embarcar desde o início em suas duvidosas manobras de resgate. O FMI não tem competência sobre as disfunções do sistema financeiro internacional; como terapeuta, vela por sua estabilidade e, portanto, atua no interesse conjunto dos investidores, principalmente dos investidores institucionais. Como integrantes da troika, as instituições europeias também se fundem com esse ator, de tal forma que os políticos, na medida em que atuem nessa função, podem se restringir ao papel de agentes que se regem estritamente por normas e dos quais não se podem exigir responsabilidades.

Essa dissolução da política na conformidade com os mercados pode explicar a falta de vergonha com a qual os representantes do Governo federal alemão, todos eles pessoas sem mácula moral, negam sua corresponsabilidade política nas devastadoras consequências sociais que aceitaram, como líderes de opinião no Conselho Europeu, por causa da imposição de um programa neoliberal de austeridade. O escândalo dentro do escândalo é a cegueira com que o Governo alemão percebe seu papel de liderança. A Alemanha deve o impulso inicial para sua decolagem econômica, do qual ainda se alimenta hoje, à generosidade dos países credores que no Tratado de Londres, de 1954, perdoaram mais ou menos a metade de suas dívidas.

Mas não se trata de um escrúpulo moral, e sim do núcleo político: as elites políticas da Europa não podem continuar se escondendo de seus eleitores, ocultando até mesmo as alternativas ante as quais nos coloca uma união monetária politicamente incompleta. São os cidadãos, não os banqueiros, que têm de dizer a última palavra sobre as questões que afetam o destino europeu.

Fonte: IHU

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A Grécia põe na mesa a carta da democracia

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Grécia x Ganância

Chantageado pelos credores, governo convoca plebiscito sobre “ajuste” imposto ao país. Oligarquia financeira vacila. O que a atitude representa, em termos globais

Por Antonio Martins

“A revolução não será televisionada”, lembra um documentário de enorme repercussão na década passada. Em certas ocasiões, os grandes impasses históricos desenvolvem-se diante dos nossos olhos – e o velho jornalismo tornou-se incapaz de narrá-los. Um deles começou a se desenrolar na manhã deste sábado (27/6) e vai se estender até 5 de Julho. Tem como protagonista o primeiro-ministro da Grécia, Alexis Tsipras, eleito no início do ano por um partido-movimento organizado em rede e partidário de uma nova ordem internacional. Pressionado pelos credores do país, que querem impor redução de direitos sociais para rolar uma dívida financeira, o primeiro-ministro da Grécia, Alexis Tsipras, convocou, em pronunciamento pela TV, um plebiscito sobre a proposta. Considerou que ela equivale a um “ultimato”, uma “tentativa de humilhar o povo grego”. Disse esperar dos eleitores “um grande não”. Lembrou que passava a palavra a eles por considerar a democracia “um valor supremo da sociedade grega”.

A consulta popular, um recurso essencial da política, foi considerada um tapa na cara pelos demais governantes dos países da zona do euro – todos implicados em políticas de . “Estou muito desapontado”, afirmouJeroen Dijsselbloem, o membro do Partido Trabalhista Holandês(supostamente de centro-esquerda) que preside o chamado “eurogrupo”. Ainda no sábado, reunido em Bruxelas, o órgão respondeu à convocação democrática com uma demonstração de força bruta. A proposta de Atenas, que pedia adiar a decisão sobre a rolagem da dívida por apenas sete dias – até que se conhecesse a opinião popular –, foi rechaçada.

O Banco Central Europeu (BCE) decidiu não manter as linhas de crédito automáticas que normalmente oferece aos bancos de todo o continente. A consequência imediata, todos sabiam, seria o início de uma crise bancária na Grécia – cidadãos correndo aos caixas para retirar seus depósitos, sem poder fazê-lo. Tsipras não se intimidou. Em novo pronunciamento aos gregos, anunciou um feriado bancário de sete dias (até a apuração dos votos do plebiscito). A medida tem conteúdo igualitário. No período, as retiradas de dinheiro ficarão limitadas a 60 euros por dia, seja qual for o volume depositado em cada conta bancária. Estão suspensas, além disso, as transferências de recursos ao exterior.

A ousadia de Tsipras provocou uma reviravolta. O poder econômico dos gregos é ínfimo, diante dos tecnocratas da União Europeia (UE) – mas a convocação do plebiscito é um tapa democrático sobre um tabuleiro viciado. Nesta segunda-feira, os mercados financeiros europeus abriram em meio a uma incerteza próxima do pânico. As ações estão caindo fortemente, nas bolsas de valores de Londres, Frankfurt, Paris e Amsterdam, as mais importantes do continente. As ações mais desvalorizadas são as dos maiores bancos europeus. O secretário de Finanças dos EUA, Jacob Lew, achou prudente intervir, erecomendar cautela aos governantes do “Velho Continente” empenhados em pressionar Atenas. Há semanas, ele havia advertido: ninguém sabe se o sistema financeiro internacional, ainda envolto em crise, suportará o impacto de um trauma como o de uma eventual expulsão da Grécia do euro..

Nos próximos sete dias, estará em jogo muito mais que uma disputa entre Atenas e Bruxelas. As sociedades têm o direito de construir coletivamente seu futuro? Ou devem curvar-se ao que Marx chamou, de modo sarcástico, de “as águas gélidas do cálculo econômico”? Num tempo em que a “aristocracia financeira” – nova classe global de super-ricos – parece cada vez mais forte e insensível aos velhos valores civilizatórios, será possível encontrar uma brecha em seu sistema de dominação?

* * *

Ao contrário do que tentam fazer crer as manchetes dos jornais de hoje, o está em jogo na disputa entre a Grécia e seus credores muito mais que uma querela econômica e técnica. Do ponto de vista financeiro, a crise grega poderia ser resolvida sem sobressalto algum. Desde 2010, a UE emprestou à Grécia algo como 316 bilhões de dólares. As duas linhas de crédito que precisam ser renovadas nas próximas semanas – 1,8 bilhão de dólares junto ao FMI, mais 7,5 bilhões de euros ao BCE – perfazem apenas 3% deste total. Se as negociações se arrastam há cinco meses é porque está em jogo muito mais que uma ninharia percentual.

Por trás dos números, cada parte tenta validar seus projetos de longo prazo para as sociedades e sua relação com as finanças. Quando evitaram que o Tesouro grego quebrasse, há cinco anos, seus credores, reunidos na chamada troika (BCE, Fundo Monetário Internacional-FMI e Comissão Europeia-CE), impuseram, como condição, um ataque rude aos direitos sociais dos gregos, aos serviços públicos e à soberania do país sobre si mesmo. Os acordos entre as duas partes foram estabelecidos em dois documentos, conhecidos como “Memorandos” (1 2). Produziram políticas que elevaram o desemprego a quase 30% (60% entre os jovens), privatizaram em massa – de portos a redes de infraestrutura a parques públicos e sítios arqueológicos –, ampliaram a carga de impostos (tornando-a, ao mesmo tempo, mais injusta) e reduziram, até mesmo em termos nominais, o salário mínimo e as aposentadorias.

O projeto de unidade europeia construído pacientemente a partir doTratado de Roma (1957), nas décadas de capitalismo keynesiano, implicava difundir o modelo do Estado de Bem-estar Social. Mas após a crise de 2008, a Europa reduziu-se ao continente da regressão de direitos e aumento da desigualdade O dinheiro destinado ao governo grego jamais produziu benefício coletivo algum: retornou integralmente aos bancos privados a quem o país devia. O movimento foi chamado de “austeridade” – um termo enganoso e interesseiro. Oculta o fato de que os lucros e salários dos banqueiros e demais membros da aristocracia financeira recuperaram-se e voltaram aos patamares nababescos de antes da crise – enquanto, nas ruas, multiplicam-se os sem-teto e os que se alimentam da sopa dos pobres.

A emergência do Syriza, o partido-movimento a que pertence Alexis Tsipras, desmontou a trama, ao jogar luz sobre ela. No país europeu mais atingido pelas “novas” políticas, o grupo chegou ao governo em janeiro. Embora ligados ao pensamento anti e pós-capitalista, seus membros apresentaram um programa moderado e realista, que se apoia em quatro pilares – todos de natureza social-democrata: a) enfrentar a crise humanitária; b) reativar a economia, com Justiça Fiscal; c) um Plano Nacional de Retomada do Emprego; d) Reforma Política para aprofundar a democracia. Embora contido, o projeto é claro: os eleitores gregos votaram numa proposta que exige a revisão dos “Memorandos” firmados com a troika.

Para surpresa de muitos, a oligarquia financeira recusou-se ao diálogo efetivo, mesmo diante desta proposta conciliadora. Em fevereiro, poucas semanas depois de assumir o governo, o Syriza enfrentou a primeira bateria de negociações com a troika. O resultado foi uma espécie de empate. Para postergar, por quatro meses, o vencimento de dois empréstimos, os gregos recuaram de medidas como a reversão das privatizações. Pela primeira vez em cinco anos, no entanto, a resistência de Atenas impediu que o governo fosse obrigado a anunciar novos cortes de direitos. Este fato provocou um primeiro desconforto, num cenário político europeu marcado pelo conservadorismo. Governos como os da Espanha, Portugal e Irlanda constrangeram-se diante de um desfecho que mostrou, para seus próprios eleitores, que poderia valer a pena resistir.

Em junho, quando este acordo provisório expirou e as negociações foram retomadas, a troika voltou com sangue nos olhos. Inspirando-se em medida semelhante oferecida à Alemanha, em 1953, Atenas reivindica uma redução na dívida, para que seja possível melhoras as condições de vida da população e relançar a economia. Os credores não se limitam a repelir a proposta. Exigem que o Syriza traia seu programa e se desmoralize. Não abrem mão de duas medidas emblemáticas, pela enorme repercussão política que teriam junto aos gregos: nova redução no valor nominal das aposentadorias (a terceira, em cinco anos) e aumento dos impostos indiretos – os mais injustos e os que são sentidos mais imediatamente pela população.

Desde meados de junho, o eurogrupo viu-se imerso numa bateria frenética de negociações. Além das reuniões entre chefes de Estado, os ministros de Finanças foram convocados a Bruxelas cinco vezes, nos últimos dez dias. Atenas chegou a lançar propostas aparentemente conciliadoras, para tensionar o discurso dos credores. Sugeriu, por exemplo, que o “ajuste fiscal” reivindicado pela troika poderia ser feito tributando os mais ricos. Não houve o menor sinal de recuo. No sábado, quando todas as possibilidades de negociação se esgotaram, Tsipras colocou na mesa a carta do plebiscito – aprovado pelo Parlamento em sessão de emergência, um dia depois. Agora, as propostas da troika terão de ser feitas a todo o povo grego, que se pronunciará no próximo domingo. Mas quais as condições concretas para continuar resistindo?

* * *

Na era da ultra-mercantilização, nada mais eficaz, para submeter um Estado ou sociedade rebelada, que o fantasma de uma crise bancária. Em 11 de fevereiro, apenas quinze dias após a posse de Alexis Tsipras em Atenas, o Banco Central Europeu agiu conscientemente para evocar uma destas crises na Grécia. Numa decisão casuística, eledecidiu excluir o país do mecanismo de assistência automática que oferece aos bancos da eurozona, quando enfrentam dificuldades momentâneas de liquidez. Desde então, o auxílio aos bancos gregos precisa ser autorizado, caso a caso, pelos dirigentes do próprio BCE. Quem reconheceu o viés político da decisão foi a revista Economist,insuspeita de qualquer simpatia pelo Syriza: “foi um tiro de advertência disparado contra o novo governo”, admitiu ela.

Inserida na zona do euro, a Grécia abriu mão do poder de emitir moeda. E, sociedade dividida em classes, passou a sofrer, também desde a chegada do Syriza ao poder, a pressão das elites, interessadas em fazer todo o possível a mudanças no status-quo. A partir de janeiro, os bancos vivem um processo de retiradas predatórias – e cada vez mais maciças – de dinheiro, feitas pelos mais ricos. Já em fevereiro, o montante total dos depósitos havia caído para 140,5 bilhões de euros, o mais baixo em dez anos, desde a criação da moeda única europeia.

O movimento intensificou-se desde então e se converteu em bola de neve à medida em que os credores endureceram as condições para um acordo. Os saques subiram a € 300 milhões diários na semana entre 13 e 20 de junho e a € bi a cada 24 horas, desde então. No último fim de semana, antes de o governo estabelecer um limite diário equânime para as retiradas, havia longas filas diante dos caixas eletrônicos. Temeu-se pelo pior: além de não haver mais dinheiro nos bancos, surgiu o risco de faltarem recursos para pagar, na virada do mês, os aposentados e pensionistas… O New York Times não deixou de captar as possíveis consequências políticas. Na Argentina, uma crise bancária que eclodiu em janeiro de 2001 derrubou três presidentes em cinco dias. Houve quem especulasse: a União Europeia estará tramando uma mudança de regime em Atenas?

É possível, porém, que estas especulações não levem em conta outro aspecto, de sentido contrário. Caso a ruptura se consume, e impeça Atenas de saldar também seus compromissos internacionais, qual será o impacto sobre os mercados financeiros internacionais? O pensamento convencional prevê repercussão limitada. O PIB anual da Grécia, de € 242 bilhões equivale a apenas 1,34% do europeu. Os grandes bancos do Velho Continente já teriam “precificado” o risco de uma retirada grega da zona do euro (a “Greek Exit”, ou “Grexit”) – ou seja, teriam feito provisões para absorver os eventuais prejuízos.

Mas talvez valha a pena ouvir duas opiniões ilustres e divergentes. No final de maio, o secretário de Tesouro dos EUA, Jacob Lew, advertiu seus colegas do G7 sobre as consequências – a seu ver desconhecidas da possível “grexit”. “Só sabemos ao certo que estamos aumentando os riscos de um acidente [financeiro] quando deixamos de agir até que chegue o próximo prazo fatal”, disse ele. Um dia depois, Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia, foi além. “Mesmo no curto prazo, as salvaguardas financeiras de uma saída grega nunca foram tesstadas e poderiam perfeitamente falhar. Além disso, a Grécia, goste-se ou não, é parte da União Europeia e seus problemas iriam se esparramar pelos demais países do grupo, mesmo se a barreira financeira aguentar”, escreveu ele – que enxerga nos governantes europeus atuais a mesma tendência à alienação e cegueira política que levou à I Guerra Mundial.

* * *

Indiferentes até ontem à crise grega, os velhos jornais brasileiros abrem hoje suas manchetes para ela. A descoberta do assunto é bem-vinda, mas em todos os textos sobressai uma distorção. A crise é tratada apenas em seu lado dramático. Destacam-se os limites aos saques nos bancos, as filas quilométricas, os temores dos aposentados. É como se estivéssemos diante de uma fatalidade trágica: os gregos desobedeceram os deuses, os mercados – agora, assistiremos ao castigo.

Nesta cobertura invertida, o que não se menciona, ou se subestima, é precisamente o fato novo, a notícia. Tsipras e o Syriza convocaram um plebiscito. A sociedade será ouvida, ao invés de convidada a submeter-se (como no Brasil do “ajuste fiscal”) a políticas apresentadas como tão inevitáveis como os terremotos ou as grandes secas ou os terremotos. Abriu-se, subitamente, uma brecha na ditadura financeira.

Saberemos aproveitá-la? Os próximos sete dias serão decisivos. O gesto de Tsipras agrega uma nova incógnita à equação, num mundo marcado por imensos riscos e oportunidades. E se as populações da Espanha, Portugal ou Irlanda – para não falar dos outros países europeus – exigirem também ser consultadas, sobre os programas impostos a seus países? E se o recém-fundado Banco dos BRICS oferecer a Atenas – amparando-se na imensa fartura das reservas monetárias chinesas – os recursos de que precisa para se livrar da crise? E se, no Brasil, alguém propuser um referendo sobre o “ajuste fiscal” também concebido para permitir elevação dos juros e enriquecimento ainda maior da aristocracia financeira?

Os dados estão lançados e o resultado final já não depende apenas do interesse dos mercados – mas das atitudes e posturas que tomaremos, coletiva e individualmente. Costumava-se dar a isso o nome de democracia.

Fonte: Outras Palavras

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Estado profundo, eventos profundos: Wall Street, Big Oil e o ataque à democracia nos EUA

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Lars Schall entrevista o Prof. Peter Dale Scott − Global Research, Canadá

The American Deep State: Wall Street, Big Oil and the Attack on U.S. Democracy

Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Lars Schall: Peter, decidimos conversar, dessa vez, sobre o Estado Profundo. A primeira pergunta que gostaria de fazer-lhe é: por que você insiste em dizer que ainda é importante falar sobre o 11/9?

Peter Dale Scott: Bem, o 11/9 foi momento de grandes mudanças na política externa e também na política doméstica dos EUA; é a razão pela qual quase imediatamente invadimos o Afeganistão e é também a razão pela qual começamos a planejar, quase imediatamente a invasão do Iraque, que se baseou no pressuposto falso de que Saddam Hussein teria alguma conexão com a Al-Qaeda. Onde houve “provas”, eram provas falsas, mas o governo escolheu acreditar nelas. De um ponto de vista norte-americano, as mudanças na política externa talvez não tenham sido tão graves quanto a implementação, naquele dia, do que chamamos de procedimentos para a “Continuidade do Governo” (orig.  “continuity of government” (COG) procedures), e que alteraram radicalmente o status da Constituição dos EUA. Planejaram durante 20 anos o que fazer no caso de emergência gravíssima como o 11/9; o plano foi trabalhado durante duas décadas por Donald Rumsfeld e Dick Cheney, que foram os dois que implementaram aquele plano no 11/9.

Edward Snowden

Não conhecemos detalhes daqueles planos, mas acho que podem ser resumidos em três grandes títulos: um deles é vigilância total, sem autorização judicial. Edward Snowden está aí para provar acima de qualquer dúvida que a vigilância é massiva, nos EUA, e por causa da implementação daqueles procedimentos COG. Outro, é a prisão sem mandado judicial; houve mais de mil muçulmanos detidos sem mandato e mantidos presos. Há, na lei comum dos EUA, o que se conhece como habeas corpus: não se pode manter pessoas detidas indefinidamente, sem formalizar alguma acusação contra o detido. Mas mais de mil pessoas foram detidas nos EUA sem acusação; e alguns desses detidos foram torturados. Essa é mudança imensa, enorme, na realidade doméstica, nos EUA.

E o terceiro título-resumo das mudanças é o envolvimento dos militares no que se chama “segurança da pátria” [orig. homeland security] nos EUA. Os militares têm agora papel de polícia, o que é absolutamente novo. Vez ou outra aconteceu de o exército ser chamado para enfrentar uma ou outra crise pontual, como os tumultos que houve em cidades do interior do país, nos anos 1960s. Mas manter um comando permanente do exército para a América do Norte − chamado NORTHCOM – isso é completa novidade; é mudança radical no papel do exército. Falo principalmente sobre isso, em Deep State [Estado Profundo]. Agora, os EUA temos instituições criadas para operar nos EUA sem serem controladas pela Constituição dos EUA. Não sei de outra mudança que possa ser mais radical que essa.

LS: O que é “Estado Profundo”, o que são “Eventos Profundos” e o que o 11/9 tem a ver com ambos?

Dana Priest

PDS: Permitam-me apresentar uma definição de “estado profundo” que não é minha. Uma repórter do jornal Washington Post, Dana Priest, escreveu um livro Top Secret America [1], no qual ela diz que agora temos

(…) dois governos: um dos cidadãos, com o qual estávamos habituados, operado mais ou menos às claras; o outro, um governo paralelo e top secret, cujas partes engordaram e reproduziram-se como cogumelos em menos de uma década, até formar um gigantesco universo próprio, que não para de crescer.

Está certo, no sentido de que esse estado profundo crescia como cogumelos ao longo da última década, quando ela escrevia. E isso precisamente por causa das mudanças introduzidas pelo 11/9 e pelos procedimentos para “Continuidade do Governo” (COG), que foram autorizadas e implementadas antes de o último dos quatro aviões estar no chão. Implementaram os procedimentos COG, e depois proclamaram a emergência, três dias adiante, e desde então vivemos sob aquele mesmo estado de emergência, o que significa que, na verdade, a Constituição já não vige como antes.

Você pergunta também sobre eventos profundos. Chamo o 11/9 de evento profundo, porque, desde o início, jamais se soube exatamente o que aconteceu. Até jornalistas comentaram a confusão e a profusão de informes; a coisa ficou tão séria que o Congresso teve de pressionar. Foi uma luta para conseguir que se investigasse alguma coisa. É o maior ato criminoso jamais cometido nos EUA, e a Casa Branca tentou não investigá-lo.

A cena do crime foi desmontada, na prática, imediatamente; para muitos, foi crime ter adulterado a cena daquele crime. Disseram que procuravam cadáveres e que, por esse motivo, removeram todo o metal encontrado. Hoje, cientistas mostram-se muito interessados em saber que tipo de resíduos havia naquele aço, para confirmar se os prédios foram explodidos de dentro para fora, ou de fora para dentro. A maior parte do metal retirado da cena do crime foi embarcado rapidamente em navios para fora dos EUA. Por essas e outras, pode-se dizer que, sim, o 11/9 foi um evento profundo, e houve uma comissão de investigação.

Há dois grandes eventos profundos na história recente dos EUA: primeiro, o assassinato de Kennedy em 1963; depois, o 11/9; há outros, e alguns deles são, de fato, bem pequenos: profundos e pequenos. Você sabe que acho que passei por alguns eventos profundos na minha vida pessoal. Narro um deles em The American War Machine. Mas os eventos profundos que tiveram consequências sobre a Constituição foram: o assassinato de Kennedy – com consequências quase invisíveis, mas nem por isso menos reais, que mudaram completamente o papel da CIA e o relacionamento da Agência com o FBI e com a polícia local.

Muito mais importantes foram as mudanças introduzidas depois do 11/9. Considerem o movimento que Edward Snowden documentou tão completamente: a vigilância sem mandado judicial. Essa, dentre as três grandes mudanças, é talvez a menos importante, mas é a única sobre a qual todos estamos falando, nesse país.

Nos dois casos, criaram-se comissões para investigar, e aquelas comissões nos apareceram com fatos que, como já está provado, eram falsos. Aí está o verdadeiro teste para diagnosticar se se está diante de um verdadeiro grande evento profundo: quando há investigações, e no final nos vêm com uma história tão cheia de buracos, que todos logo percebem que não passa de um monte de mentiras. Então, por definição, evento profundo é aquele sobre o qual a verdade jamais é apresentada à opinião pública; os maiores deles são aqueles em que aparece alguma ‘versão’ que pode ser verdadeira em alguns aspectos, mas que é rigorosamente falsa nos aspectos chaves.

John Kennedy

LS: No seu trabalho, dentre outras coisas, você está à procura do padrão que se teria repetido no 11/9 e no assassinato de JFK. Para começar: quando foi que você encontrou esse padrão e o que o levou a ele?

PDS: Logo depois do 11/9 chamou-me a atenção o fato de que eles já sabiam, quase imediatamente, quem fizera tudo. No livro de Richard Clarke (que estava em posição de saber), ele diz que o FBI tinha uma lista dos sequestradores dos aviões já antes das 10h daquele dia (antes, portanto, também, de o último avião cair). Quem conheça qualquer coisa sobre o assassinato de Kennedy sabe que uma das coisas jamais explicadas é como conseguiram divulgar, na fita distribuída pela polícia, uma descrição do assassino, do homem que atirou contra Kennedy, aparentemente de uma janela. E a descrição era bastante precisa: 1,70m [orig. 5 feet ten inches], 74,80kg [orig. 165 pounds]. Ninguém jamais disse de onde saíra tal descrição. Adiante, foi atribuída a um homem, Howard Brennan, que estava na rua e disse ter visto o atirador; mas só viu o topo da cabeça do homem, pela janela; como poderia saber que media 1,70m e pesava 74,8 kg?

Lee Harvey Oswald

O que interessa é que essa é precisamente a descrição de Lee Harvey Oswald na ficha do FBI e na ficha da CIA, apesar de estar errada. 15 minutos depois do assassinato, a rádio interna da Polícia já divulgava uma descrição do assassino, copiada dos arquivos do FBI e da CIA; e o  FBI  nunca conseguiu explicar, ninguém, do lado do governo, jamais conseguiu explicar como aconteceu tudo isso.

Vale o mesmo também para o 11/9. Também nesse caso logo apareceu internamente uma lista de sequestradores, e dois nomes que lá estavam foram rapidamente excluídos, porque um [Adnan Bukhari] havia morrido, e o outro [Ameer Bukhari] comprovadamente não estava em avião algum. Acho que essa também foi uma lista copiada de arquivos. E essa é só a primeira semelhança entre esses dois eventos profundos. Em meu livro The War Conspiracy listo mais de uma dúzia de semelhanças e, desde então, continuo a acrescentar outras semelhanças, no modus operandi.

Outra coisa é que essas pessoas sempre deixam rastros “em papel”: Oswald mantinha um diário e fez quantidade enorme de coisas que, adiante, foram usadas para incriminá-lo (quando, claro, já estava morto); e, no Aeroporto Logan, Mohamed Atta e seus amigos deixaram um carro cheio de provas. Sempre muito conveniente para o FBI que os perpetradores – ou os que chamo de “culpados por designação”, porque evidentemente já estava resolvido, desde antes, quem levaria a culpa pelo crime – todos eles, tenham fornecido provas documentais contra eles mesmos. E há muito mais. Não sei se basta para você, agora.

LS: Gostaria de perguntar-lhe sobre canais de comunicação específicos envolvidos nos dois casos, no assassinato de JFK e no 11/9. Por que essa talvez seja a semelhança mais importante?

PDS: É verdade, sim, que acho que a rede nacional de comunicações – nomes diferentes ao longo dos anos, mas é a rede especial de comunicações que foi montada em conexão com os planos para Continuidade do Governo, e a coisa começa nos anos 1950s, mudando sempre de nome. Essa semelhança só a encontrei mais tarde. Durante muitos anos eu soube que a Agência de Comunicação da Casa Branca [orig. White House Communications Agency (WHCA)] foi fator importante no assassinato de Kennedy, porque trabalharam junto com a investigação feita pela Warren Commission, distribuíram as transcrições e liberaram algumas mensagens do Serviço Secreto, mas sabe-se que havia dois canais da Polícia, ambos divulgados, mas também havia um terceiro canal, que estava sendo usado no Daily Plaza, e o Serviço Secreto estava usando o canal do que se conhece como Agência de Comunicação da Casa Branca.

Eu soube, durante anos, que tínhamos de explicar isso, mas não conseguíamos. Em 1993, quando organizaram um Corpo para Revisão dos Registros do Assassinato [orig. Assassination Records Review Board], fui até lá e disse que eles tinham de obter aqueles registros, mas não foram divulgados. Mesmo assim, a Agência de Comunicação da Casa Branca vangloria-se, no seu website – suponho que ainda se possa ler lá – de ter ajudado a resolver o caso do assassinato de Kennedy. Acho muito estranho, porque há muitos registros que nunca foram entregues à Comissão Warren, supostamente encarregada de resolver o mesmo caso.

E então, quando os registros começaram a aparecer sobre o 11/9 – demorou alguns anos, tivemos o relatório da comissão do 11/9 e lá se via que há algumas comunicações, telefonemas, que foram feitos e recebidos, mas sem qualquer registro. Em meu livro The Road to 11/9, escrevi que as provas sugerem que estivem usando… que já estivessem implementando os procedimentos para Continuidade do Governo (COG). Significa que, se isso se confirmar, eles implementaram [e já estavam usando] a rede especial de comunicaçõesCOG, a qual, com troca de nomes, é herdeira da rede de emergência; e que a Agência de Comunicações da Casa Branca era, como continua a ser até hoje, parte daquela rede de emergência.

Por causa disso, pude confirmar que o caso Irã-Contras foi mais um evento profundo, porque se descobriu que Oliver North, em 1985-86, enviava armas para o Irã, o que é ilegal, e muita gente no governo nada sabia sobre a “prática”. Não sabiam, porque Oliver North era o encarregado daquela mesma rede de emergência e usou aquela rede de emergência para comunicar-se com a Embaixada em Portugal, por exemplo, para facilitar o processo de levar as armas ao Irã. Isso, para mim, é mais um denominador comum.

Oliver North

Watergate foi outro evento profundo. Até hoje ainda não se sabe por que fora instalada uma escuta no telefone do Comitê Nacional do Partido Democrata, mas sabemos que James McCord, encarregado da equipe que instalou a escuta, era membro da rede Especial da Reserva da Força Aérea conectada aos procedimentos para Continuidade do Governo. E que estava encarregado dos diferentes passos para o mesmo tipo de ação: quem vigiar, as prisões sem ordem judicial. Todas essas ações já estavam organizadas e operantes na época de Watergate.

Esses, portanto, são os denominadores comuns que mais me chamam a atenção nesses quatro eventos profundos – JFK, Watergate, Irã-Contra e, finalmente, o 11/9. E se algum dia voltarmos a ter evento profundo desse tipo, posso prever agora, com base no que já se sabe sobre o desempenho passado, que a rede de emergência, essa rede à qual as pessoas comuns que trabalham no governo não têm acesso, novamente será fator decisivo.

LS: O Serviço Secreto foi ativo nos dois eventos principais?

PDS: São eventos principais precisamente por causa do que dissemos: porque usaram a Agência de Comunicação da Casa Branca para suas comunicações. Já se escreverem muitos, muitos livros sobre o Serviço Secreto e o assassinato de JFK – alguns muito exagerados, e houve quem envolvesse o Serviço Secreto naqueles eventos. Acho que, nisso, muita gente fez mal o próprio trabalho; ou não fizeram o que deveriam ter feito, não investigaram quem deveriam ter investigado. Não implica dizer que sejam culpados, e não estou subscrevendo aquelas teorias. Menos óbvio no caso de 11/9, o Serviço Secreto. Mas, o que é interessante, eles tiveram um papel ali, porque, num certo ponto – há um avião especial para a Continuidade do Governo, chamado E4B, conhecido como o “Avião do Juízo Final” [orig.Doomsday Plane], e chamam o planejamento para a Continuidade do Governo de “Programa do Juízo Final” [orig. Doomsday Program], e esse avião sobrevoou a Casa Branca.

Nenhum avião pode sobrevoar a Casa Branca, em nenhum caso. Mas precisamente naquele dia, quando tudo deu errado, o E4B – deve ser o avião especial para a Autoridade Nacional em Comando, que são o presidente e o secretário de Defesa. Mas, evidentemente, nem um nem outro estavam naquele avião: o presidente estava na Florida, e o secretário de Defesa estava no Pentágono, segundo seu próprio relato, ajudando a pôr gente em macas – o que parece serviço bem esquisito para o secretário de Defesa, no momento em que a nação estava sendo atacada.

Dick Cheney

Mas o avião lá esteve, e o Serviço Secreto reagiu, fazendo evacuar o prédio. Há narração muito vívida de como praticamente tiveram de puxar o vice-presidente Cheney da cadeira onde estava e empurrá-lo para fora e é claro que lhe disseram que o país estava sendo atacado e que o mais lógico, o mais sensível, para ele, seria sair o mais depressa possível para o que se conhece como PEOC (Presidential Emergency Operations Center, o bunker de emergência que há no subterrâneo da Casa Branca, para quando a nação seja atacada. Mas o mais interessante é que Cheney não foi diretamente para o PEOC; passou vários, vários, muitos minutos no túnel, usando um telefone que havia ali. E o que poderia ser aquele telefone? Aposto bom dinheiro que era telefone conectado à rede de emergência, e acho que ali, por aquele telefone, tomaram-se várias decisões chaves; ali, não na presença dos principais conselheiros que já estavam no PEOC.

Quero dizer pois que o Serviço Secreto estava envolvido, no sentido de que sua missão era levar Cheney e permanecer com ele naquele corredor – por cerca de 20 minutos – enquanto Cheney fazia várias ligações e falava com ambos, o presidente e o secretário de Defesa.

LS: Sobre o “Programa Continuidade do Governo”: por que é tão importante saber mais sobre ele? E continua ativado, até hoje?

PDS: Comecemos pela segunda parte da pergunta. Sim, tanto quanto se sabe, continua ativado. Não é fácil falar sobre isso, porque ninguém jamais pronunciou uma única palavra sobre o que são esses procedimentos especiais. Só se sabe o que foi revelado nos anos 1980s. Mas fato é que tudo de que se falou nos anos 1980s é o que se vê implementado desde então: vigilância total sem autorização judicial, está aí, para quem queira ver; detenção por tempo ilimitado e sem acusação formal, está aí, para todos verem; os militares envolvidos permanentemente nas funções tradicionais de polícia. Há uma brigada do exército em permanente estado de prontidão, para enfrentar quaisquer casos de perturbação social interna.

LS: E por que é importante saber mais sobre isso tudo? Por exemplo, significa que a Constituição dos EUA, de que os norte-americanos tanto se orgulham, está suspensa, sem efeito?

PDS: Não está suspensa completamente, mas em larga medida foi suplantada. As três coisas de que falei, todas, especialmente as duas primeiras. Quero dizer que todos sabemos que o habeas corpus é muito claramente mencionado na Constituição. Não que seja exatamente garantido pela Constituição, mas é assumido como direito garantido na Constituição, porque tem longa história que vai até a Carta Magna no século XIII. É um dos mais antigos direitos fundacionais das liberdades da common law. E foi gravemente ab-rogado, não suspenso. Se quiserem deter alguém, deterão, como têm detido. E não só estrangeiros: também cidadãos norte-americanos.

Assim portanto, sim, o status constitucional foi gravemente erodido, e mais e mais pessoas começam a falar sobre isso. Finalmente começamos a ver debate sério sobre a vigilância ilegal, que é inconstitucional, e o presidente disse que tomaria providências, mas ainda não se viu, até agora, providência alguma, além de muito se dedicarem a processar Snowden, que prestou relevante serviço público. Como se não bastasse, acusaram também o homem que criou o programa de encriptação que possibilitou que Snowden partilhasse os documentos com Greenwald. E tanto perseguiram esse homem, que ele foi forçado a fechar sua empresa. Estão impondo a todos, com requintes de crueldade, esse sistema de segredos – governo que governa por segredos, como se houvesse uma segunda carapaça que fecha o governo sobre ele mesmo e mina qualquer tentativa de abertura e transparência.

LS: Quanto ao 11/9, você diz que, de certo, só sabe uma coisa: que com certeza houve encobrimento massivo. O que foi encoberto e por quê?

PDS: Até hoje não há explicação satisfatória de por que os aviões caíram. O mais provável é que tenham sido interceptados em voo. Com certeza, ao tempo do 3º e do 4º aviões, eles têm de ter sido interceptados. Há uma explicação elaboradíssima da comissão que investigou o 11/9, mas muitas coisas permanecem sem explicação. O comportamento do vice-presidente, que era figura chave. Houve um telefonema que implementou o programa Continuidade do Governo; aí está o centro de tudo que aconteceu aqui. Não há nenhum vestígio desse telefonema. Não porque jamais teria havido traço algum, porque é claro que o telefonema não foi feito de telefone particular, ou coisa assim; não há vestígio desse telefonema porque ele foi com certeza feito por canais internos, tenho certeza de que foi feito por uma linha do programa Continuidade do Governo. E é direito nosso saber exatamente o que aconteceu e o que foi feito.

Tudo isso, além do mais, tem consequências legais reais, porque uma das coisas que ainda terão de ser explicadas é por que o vice-presidente tomou decisões que, por lei, não podia tomar. Temos uma Autoridade Nacional em Comando que governa os militares: são o presidente e o secretário de Defesa. Tanto quanto se sabe – e faltam muitas informações, o que permite supor que estejam sendo ocultadas – as decisões reais foram tomadas pelo vice-presidente que não é parte da Autoridade Nacional em Comando.

Tudo isso teria de ser investigado, porque é muito possível que se tenham cometido vários crimes, na reação ao 11/9. Aqui não falo do próprio dia 11/9, que não discuto em meu livro, porque já foi discutido em muito livros. Mas na resposta ao 11/9 com certeza fizeram-se coisas que não foram feitas como a lei determina que sejam feitas. Como foram feitas, é o que hoje se encobre, porque não há registros de coisa alguma.

LS: Teria sido possível evitar que o 11/9 acontecesse? Quero dizer, é pergunta crucial para tudo quanto tenha a ver com a Agência de Segurança Nacional (NSA). A NSA ignorava completamente os planos para atacar os EUA?

Curt Weldon

PDS: Sabe-se tão pouco dessa Agência de Segurança Nacional dos EUA, que é difícil, para mim, responder sua pergunta. Há alegações, é claro, de que esse tenente Shaffer apresentou-se e disse que a Agência de Inteligência da Defesa (DIA) tem, de fato, arquivos completos sobre Mohamed Atta e outros (…) Mas o Pentágono negou e depois o deputado Republicano Curt Weldon levou a coisa ao Congresso e queria mesmo ir ao fundo de tudo e, na sequência, o FBI  tratou-o de forma horrorosa. O FBI vazou a “ideia” de que Weldon estaria sob investigação por causa de algo que envolveria a filha dele, e todos os jornais encheram-se daquele assunto. Weldon não chegou a ser acusado formalmente, mas não foi reeleito, quer dizer, o FBI conseguiu tirá-lo do Congresso.

Foi portanto um sinal, e falo disso no meu livro, de que é muito perigoso, para políticos eleitos, desafiarem essa parte do governo dos EUA que chamo de “estado profundo”, porque inevitavelmente, se se atrevem a desafiar o estado profundo, acabam derrotados nas urnas, quando se candidatam à reeleição. Escrevi isso antes do caso Curt Weldon, mas o caso foi muito importante.

Falemos sobre a CIA. A CIA com certeza absoluta sabia sobre os dois sequestradores, que eles estavam naquela ação – costumo dizer “ditos sequestradores” porque, não sei com certeza, até hoje − que papel tiveram no 11/9, mas acho provável que eles tenham embarcado nos aviões, embora absolutamente não consiga acreditar que seriam capazes de dirigir os aviões para atacar os prédios. Essa foi ação de alguma outra força agindo do lado de fora dos aviões, uma tecnologia simples e fácil de operar no século XXI. Mas se aqueles dois sequestradores… A CIA teria de ter informado o FBI sobre eles, mas não informou. E eles puderam movimentar-se à vontade, fazer contato com outros sequestradores. Se os procedimentos tivessem sido respeitados, a CIA teria notificado o FBI, o FBI os poria sob vigilância e, a partir daqueles dois, seria possível conhecer virtualmente todos os sequestradores. Portanto, o fato de a CIA não ter encaminhado a informação que tinha sobre eles é uma das causas de as coisas terem acontecido como aconteceram dia 11/9.

É só uma parte do grande quadro, mas é parte significativa; e houve falhas de comunicação semelhantes a essa também no caso do assassinato de John F. Kennedy. Aí está mais uma das muitas semelhanças – que a CIA enviou um telegrama ao FBI … Não foi telegrama, foi uma mensagem: enviaram uma mensagem ao FBI sobre Lee Harvey Oswald, mas suprimiram a informação sobre o que os teria levado a pôr Lee Harvey Oswald sob vigilância total. E se ele não estivesse sob vigilância, não teria tido o papel que acabou por ter, quando foi “designado” culpado pelo assassinato de Kennedy. Nesse sentido é que me parece muito, muito significativo que a CIA tenha ocultado essa informação.

Não estou dizendo que eu saiba quem fez acontecer o 11/9 e, diferente de muitos, não estou dizendo que a Casa Branca fez acontecer o 11/9. Não. Acho que alguém no estado profundo fez acontecer o 11/9. Mas, veja bem, pela minha concepção, há muitos elementos, nesse estado profundo, que não participam sequer do governo. Por isso, dizer que uma ou outra coisa foi obra do estado profundo não informa muito sobre coisa alguma. Mas temos de saber mais e há registros escondidos que têm de ser expostos, porque nos ajudarão a compreender o que houve.

LS: Mas digamos que, se houvesse elementos do governo envolvidos no 11/9… O que se diz é que, se houvesse, alguém já teria falado. Ninguém consegue guardar segredos em Washington. O que você pensa sobre isso?

PDS: Bem… Há até um livro sobre o assassinato de Kennedy, que leva o título de “Alguém já teria falado” [orig. Someone would have talked]. De fato, dizem isso desde o início, depois do assassinato de Kennedy, e a resposta do livro é que ninguém deu ouvidos aos que, sim, falaram.

Acontece o mesmo sobre o 11/9. Ontem mesmo estava conversando sobre o 11/9, e lá havia alguém disposto a jurar sobre a Bíblia, que o último avião, o voo 93, foi provavelmente atingido sobre Shanksville, parte do avião caiu ali, mas o avião continuou porque… o sujeito tem um amigo que falou com um grande amigo de alguém que tem um outro grande amigo que viu o míssil atingir o voo 93 sobre Camp David, onde o presidente poderia estar, escondido nas montanhas. Nada disso apareceu nos jornais, não porque o homem não tenha falado, mas porque ele falou; imediatamente depois recebeu uma visita do FBI e o FBI disse ao homem que nunca mais voltasse a falar sobre o tal assunto.

Na verdade, apareceu na mídia. Há – acabo de rever – uma matéria de TV daquele momento. E o FBI diz que um avião foi abatido sobre Camp David e que receberam a informação da Administração Federal de Aviação (FAA). Estava tudo na televisão, mas foi tirado da televisão, e a nação esqueceu aquilo, ou quase toda a nação esqueceu o que vira e ouvira. O voo do E4B sobre a Casa Branca – também foi notícia da CNN, na televisão. É parte muito importante da história. Mas, na sequência, a coisa é apagada. Por sorte, algumas pessoas gravaram e repuseram a informação no YouTube (vídeo a seguir).

A Força Aérea negou que tenha acontecido, mas não há dúvidas de que aconteceu, é claramente o E4B. Depois, outras pessoas apareceram com algumas explicações.

É sabido que a informação é sempre controlada em qualquer sociedade, e se alguém diz algo que não se enquadra na história oficial… Somos sociedade bastante aberta, nos EUA. De fato, as pessoas dizem, sim, o que veem e sabem. Mas as autoridades e a imprensa-empresa comercial absolutamente não lhes dão ouvidos.

LS: Ainda sobre essa questão, se alguém tivesse falado sobre o 11/9, e que pode ter acontecido coisa muito diferente do que foi informado às pessoas e o caso de Sibel Edmonds. Você pode falar um pouco sobre ela?

PDS: Sibel Edmonds era tradutora e trabalhava para o FBI, e viu coisas. Suas línguas eram, se bem me lembro, turco e farsi, e ela viu que o FBI estava investigando gente e, porque os agentes não falavam farsi, precisavam que ela traduzisse as comunicações que tinham. E o que ela viu era tão alarmante, que ela tentou levar a coisa ao conhecimento dos chefes dela.

Faz muito tempo que estudei o caso dela, mas, basicamente, lhe disseram que calasse a boca. Depois e até hoje, ela está sob ordem judicial e proibida de falar. Então, não contou tudo o que sabe, fala sobre outras coisas, mas, sim, deu fortes indicações de que gente muito “graúda” dentro do governo esteve envolvida em atividades pouco recomendáveis com outros governos e ela citou aqueles governos, entre os quais o governo da Turquia. Sibel é só um exemplo, e não é o único caso, de cidadão proibido de declarar a verdade, nessa sociedade livre em que vivemos.

LS: A versão oficial do 11/9 está baseada em grande parte no que prisioneiros disseram sob tortura. A história fica toda comprometida, por causa disso? E essa informação continua a ser ocultada de muitas e muitas pessoas, até hoje?

PDS: O relatório da Comissão do 11/9 é apenas uma pequena parte da investigação, mas a parte em que se fala sobre o que a Al-Qaeda teria feito, como teriam planejado e tal e tal, sim, todas essas informações foram obtidas de prisioneiros sob tortura. Algumas dessas testemunhas já não permanecem presas e retiraram aquelas declarações. Abu Zubaydah, por exemplo, “confessou” que seria membro da Al-Qaeda, o que jamais foi, em tempo algum. Tudo, aí, me parece mal conduzido e desencaminhado. Minha opinião é que aqueles depoimentos devem ser descartados para sempre.

Isso não invalida todo o relatório da Comissão do 11/9, mas alguns capítulos, os que falam sobre o que a Al-Qaeda teria feito, sim, esses capítulos não merecem nenhuma confiança e não podem ser tomados em consideração. Na verdade, a Comissão do 11/9 pediu para ver as transcrições, mas jamais as recebeu; basta isso, para que tudo se torne muito suspeito. A Comissão não foi jamais informada de que as testemunhas estavam depondo sob tortura. A partir disso, acho que ambos os co-presidentes daquela comissão, Thomas Kean e Lee Hamilton, reclamaram que teriam sido realmente enganados pela CIA.

Por essas e outras, a versão oficial que se lê no relatório da Comissão do 11/9 está em farrapos. Foi desqualificada até pelos co-presidentes da própria comissão. Seja como for, o importante é que, em primeiro lugar, nunca poderia ter acontecido de autoridades dos EUA usarem tortura para extrair depoimentos de prisioneiros. Em segundo lugar, o fato não poderia ter sido escondido das autoridades. Se torturaram, teriam de dizer que torturaram e que aquelas informações foram extraídas sob tortura; mas mentiram sobre isso, quero dizer, mentir é o terceiro crime. E em todos os casos e seja como for, tudo isso é uma desgraça.

LS: Você acha que a hegemonia dos EUA declinou por causa da ação que se seguiu ao 11/9? Por exemplo: tudo sugere que os verdadeiros beneficiários da Guerra ao Terror são, mesmo, China e Rússia.

PDS: Bem, vejamos tudo isso, passo a passo. Uma das principais consequências do 11/9 foi os EUA invadirem o Iraque. E acho que ninguém, no mundo, discordará se dissermos que o poder dos EUA principalmente no Oriente Médio começou a ser erodido por causa daquela ação de invadir o Iraque. O primeiro resultado não desejado surgiu logo em seguida, nas eleições: se querem democracia no Iraque, e no Iraque a maioria é xiita, a maioria elegerá governo xiita. E os xiitas são muito mais amigos do Irã, que dos EUA. Muita gente previu que aconteceria exatamente o que aconteceu. Não se trata de engenharia espacial; é o óbvio.

Aquela invasão também fez aumentar as tensões entre EUA e Arábia Saudita. A Arábia Saudita historicamente — se é bom ou mau que assim seja é outra questão a debater –sempre foi o mais forte aliado dos EUA naquela região. E hoje há grandes diferenças, porque a Arábia Saudita adorou ver o fim de Saddam Hussein, mas não queria invasão; porque sabia que a invasão desestabilizaria o Iraque e criaria um estado… não gosto de dizer “estado falhado”, não gosto dessa expressão… mas criaria uma autoridade muito enfraquecida no Iraque, o que é muito perigoso para a Arábia Saudita. Os sauditas têm todos os motivos para estar muito desgostosos com o que os EUA fizeram no Iraque; a invasão enfraqueceu as relações dos EUA com os sauditas.

Zbigniew Brzezinski

Agora, aí está todo o Oriente Médio – o que Zbigniew Brzezinski chamou de Arco das Crises, em 1978 ou 79; e hoje é muito mais Arco das Crises do que era naquele momento, por causa… Você sabe que, para mim, a invasão contra o Afeganistão também foi erro grave, mas ainda me parece mais defensável que a invasão contra o Iraque, mas esses dois erros expandiram-se enormemente e, isso, ainda sem falar sobre a Al-Qaeda. E surgiram novas forças al-Qaedistas, gente em tudo assemelhada à Al-Qaeda, e há hoje muitos grupos que têm realmente base no Iraque, hoje, como resultado da invasão dos EUA contra o Iraque. E a coisa está-se expandindo também para a África. Por tudo isso, não sei se os maiores beneficiados são mais a Rússia e a China, que grupos de foras-da-lei e a anarquia.

Entendo que Rússia, China e os EUA todos têm interesses comuns em não promover terroristas e o terrorismo, e acho que a Rússia já disse muito claramente que gostaria de cooperar com os EUA para enfrentarem o terrorismo; até houve momentos em que parecia que Obama, pelo menos, tinha vontade de trabalhar mais em associação com a Rússia, especialmente no caso da Síria, por exemplo, onde elementos al-Qaedistas são hoje parte importante do problema, e para ambos, para a Rússia e para os EUA.

E então, de repente, os EUA inventamos a Ucrânia. De fato, até a Ucrânia se pode dizer que teve muito a ver com o que aconteceu depois do 11/9. Essas discussões podem exigir mais tempo do que temos aqui, mas a deterioração do entendimento entre Rússia e EUA – e o Afeganistão é parte disso – é questão muito complicada, e outras questões também são complicadíssimas, mas uma coisa é bem clara: o Iraque foi desastre completo e criou tensões de tal ordem que, se não aprendermos a lidar com essas tensões, nos aproximaremos cada vez mais perigosamente de uma guerra nuclear, mais rapidamente hoje, do que há 20 ou 30 anos. Essa, sim, é situação muito alarmante.

LS: Sobre a guerra do Iraque, você diria que o movimento pela paz em todo o mundo falhou depois do 11/9, porque muito protestaram, por exemplo, contra a guerra no Iraque, mas sem questionar as raízes do mal, a saber, a narrativa oficial sobre o 11/9, como pretexto e suposta justificativa para ir à guerra?

PDS: Com certeza teríamos movimento muito mais poderoso contra a guerra do Iraque, se já tivéssemos compreendido exatamente o que aconteceu no 11/9. Mas não acho que seja realista supor que poderíamos saber, naquele momento, o suficiente. Você sabe… os EUA invadiram o Iraque em 2003, e só em 2004 foi divulgado o relatório da Comissão do 11/9, que não é grande coisa, mas nem isso havia em 2003. Por isso, não me parece que poderia ter ajudado o movimento antiguerra em 2003, mas com certeza ajudará em movimentos futuros, do mesmo tipo.

John Kerry

Não sei o que acontecerá na Ucrânia, mas… Bem, a verdade é que, sim, acho que agora já sei. Acho que a Europa está intervindo para impedir que os EUA façam papel de perfeitos imbecis. Não posso acreditar que John Kerry tenha realmente dito algumas das coisas que, sim, ele disse recentemente. Penso, por exemplo, no que disse a Putin depois da Crimeia, que não se faz tal coisa no século XXI. Ora! Os EUA são o mais desavergonhado e visível exemplo de, exatamente, a mesma prática!

Portanto, penso que quem não está no governo tem de mobilizar-se em todo o mundo para criar uma opinião pública global que possa deter – não digo só os EUA, mas os EUA e todos os demais governos que se excedam, como os EUA excedem-se. Várias vezes aconteceu de os governos não se preocuparem com a opinião pública, o que sempre foi mau. E agora estamos começando a desenvolver uma opinião pública, que pode controlar os governos, o que é bom.

Acho que a opinião pública for fator determinante para persuadir empresas norte-americanas a não investir na África do Sul. E o movimento de desinvestimento, que foi ação da opinião pública, foi fator importante, e o próprio Nelson Mandela reconheceu-o como tal, como fato importante da libertação da África do Sul. Foi ação da opinião pública. No fim, quem pôs fim à segregação racial no sul dos EUA também foi a opinião pública. É uma ação positiva. Nada conseguiu no caso do Iraque, mas não se pode concluir que, porque não deu certo uma vez, o movimento não valeria a pena. Vale. Vale muito a pena.

LS: Você tem alguma esperança de que algum dia, no futuro, será possível dar resposta satisfatória à pergunta sobre o que, realmente, aconteceu no dia 11/9 nos EUA?

PDS: Se você está falando de o governo dos EUA dar resposta satisfatória a essa pergunta, o mais provável é que jamais dê. Mas as pessoas estão investigando. Muita gente dedicou a vida a investigar aqueles eventos. Não é o meu caso, mas há gente que fez exatamente isso. Acho que já há descobertas importantes. Já se sabe com certeza, por exemplo, que, sim, havia material explosivo no Prédio Sete e nas duas torres. Houve uma investigação conduzida pelo NIST – Instituto Nacional de Tecnologia e Padrões; recentemente, o mesmo NIST foi obrigado a revisar suas conclusões daquela época.

Você sabe, eles disseram que o Prédio Sete caiu em 5,3 segundos e os críticos responderam que parte desse tempo foi queda livre; e eles disseram simplesmente que a queda em 5,3 segundos não poderia ter sido queda livre. Pediram então definição mais clara sobre o que significavam aqueles números, e apareceu um gráfico no qual se viu que, de fato, durante dois ou três segundos, no meio da queda, o prédio desabou em queda livre. Ora, se o prédio desabou em queda livre, tem de ter havido algum tipo de explosão que “esvaziou” o caminho da queda da parte superior do prédio, até o chão: bem simples de entender.

Tudo isso para dizer que acho que fizemos progressos significativos; podemos falar seriamente sobre os eventos, para fazer o governo admitir a verdade dos fatos. Mas… Você sabe, já estamos em  2014 e ainda não apareceu ninguém para corrigir as conclusões da Comissão Warren, mas a maioria dos norte-americanos sabemos que a Comissão não chegou a nenhum tipo de resposta confiável. A própria opinião pública, os próprios cidadãos, penso eu, continuarão a investigar com seriedade.

LS: Mas vinda da comunidade internacional, há algum tipo de pressão para que os EUA promovam investigações claras e limpas? Você acha que haverá, algum dia?

Glenn Greenwald

PDS: Sou ex-diplomata e acho que governos não falam nesse tom, entre governos. Não sei, sequer, se seria bom que falassem. Governos têm de lidar com interesses sempre estreitos. Não é tarefa para governos, é tarefa para o povo, para alguma imprensa-empresa livre, onde houver, pressionar para que a verdade venha à tona. Por sorte, outros países também falam inglês, de tal modo que a imprensa britânica, por exemplo, pôde acolher e divulgar com muito mais precisão os feitos de Snowden e o material que entregou aos cuidados de Glenn Greenwald. De modo geral, acho que se os norte-americanos quiserem saber o que se passa no país, melhor que passem a ler o Guardian inglês – em inglês, e que pode ser lido online. Verdade é que só não sabe das coisas quem prefira não saber.

É o tipo de coisa que pode restaurar certo grau mínimo de sanidade, num mundo que… Devo dizer que os EUA são país maravilhoso, gosto muito de viver aqui. Problema, mesmo, é o governo dos EUA que, ultimamente, tem agido como doido. Invadir o Iraque foi loucura. Muitos especialistas disseram que nunca daria certo. Depois, o governo disse que Saddam Hussein teria armas de destruição em massa, mas as provas logo foram desmentidas, e tão completamente desmoralizadas que o governo sequer conseguiu usar a ideia-ameaça como planejara usar. Para devolver o governo dos EUA à sanidade, só muita pressão feita pela opinião pública.

LS: E como você avalia o fato de que ninguém foi punido pela produção e divulgação de todas aquelas mentiras sobre a guerra do Iraque?

PDS: Pode-se discutir muitos detalhes sobre isso. Em meu livro The American War Machinemostro como uma empresa privada foi paga para produzir informação de inteligência sobre se Sadam tinha ou não armas de destruição em massa, e aquela empresa concluiu que sim, que Sadam tinha armas de destruição em massa: a empresa chama-se Science Applications International Corporation,  SAIC. Depois, quando afinal já ninguém acreditava que houvesse lá as tais armas de destruição em massa, o problema passou a ser entender como, afinal, o governo fora convencido de que havia as tais armas. E qual foi a empresa selecionada para explicar o que havia sido tão espantosamente mal feito na “investigação” inicial de inteligência no Iraque? A mesma empresa Science Applications International Corporation , SAIC!

Science Applications International Corporation,  SAIC

Penso mais ou menos como o Bispo Tutu da África do Sul: acho que precisamos de verdade e de reconciliação; é mais importante hoje, do que mandar gente para a cadeia. Precisamos tão urgentemente de verdade que nem me incomodaria adiar a prisão dos bandidos, se isso ajudasse a encontrar a verdade. Porque, se os EUA conhecermos a verdade, será possível pensar, por exemplo, no fim do estado de emergência que ainda continua implantado aqui – renovado por Obama ano após ano (tem de ser renovado anualmente), sem qualquer discussão. Com informação verdadeira e bem provada, o Congresso poderia afinal fazer o que é sua missão – em vez de só pensar em estados de emergência, programas Continuidade do Governo, em tripudiar sobre a Constituição dos EUA. Quanto maior a quantidade de informação verdadeira sobre essas coisas, mais rapidamente os EUA voltarão a ser o que um dia foram, que nunca esteve sequer perto do ideal, mas sempre foi muito, muito melhor do que os EUA que há hoje.

LS: Os interesses de Wall Street estão implantados no fundo do coração do estado profundo?

PDS: Ah, sim, estão. Em meu livro… A noção inicial do estado profundo é que todas as instituições públicas estão sendo sobrepujadas pela Agência de Segurança Nacional, pela CIA, pelo Comando de Operações Especiais Conjuntas e pelo Pentágono – todas essas novas instituições secretas – e aí está o primeiro nível do estado profundo. Mas essas agências são poderosas porque têm conexões fora do governo; elas não reportam só ao Presidente – especialmente a CIA, e é fácil provar – mas também têm raízes em Wall Street, estrutura que foi projetada de fato por Allen Dulles, quando ainda era advogado em Wall Street, antes de passar a trabalhar na CIA.

E a CIA é tão poderosa por causa dessas conexões com Wall Street e – o que sempre foi praticamente a mesma coisa – por causa de suas conexões com o big oil, porque as gigantes do petróleo sempre tiveram sede em New York e, reunidas, operavam como cartel cujo advogado, sempre muito bem-sucedido, era o escritório Sullivan & Cromwell, escritório de advocacia em Wall Street, cujos principais sócios eram – não por acaso – John Foster Dulles e Allen Dulles.

John e Allen Foster Dulles

Wall Street, sim, é importante; já era, como é fácil mostrar historicamente, nos anos 1950s, e mostro no meu livro. Hoje é mais difícil provar, mas há muitas pistas. Uma das provas desse “envolvimento” é, hoje, o estado profundo o qual, é preciso reconhecer, vai-se tornando cada vez mais multinacional, ao mesmo ritmo em que as empresas se foram tornando multinacionais. A Exxon é empresa multinacional e há outras, especialmente a empresa Blackwater, que é essa espécie de exército privado que atua em vários locais. Não sei se foi a imprensa alemã… mas acho que, sim, li na imprensa alemã, que a mesma Blackwater ou uma sua subsidiária, está hoje operando na Ucrânia.

LS: É verdade. A imprensa alemã divulgou essa informação.

PDS: O que conhecemos como uma empresa norte-americana mantém hoje, tecnicamente, a própria sede no Qatar, no Golfo Persa. Não é mais controlável. Como as leis vigentes em Washington conseguirão controlar uma empresa cuja sede está localizada no Golfo Pérsico? Assim age o aparelho de um estado profundo supranacional, e teremos de desenvolver instituições supranacionais para controlar essas novas instituições, esses novos tipos de empreendimento, cujo “plano de negócio” inclui provocar agitação e tumultos, porque, nessas condições, os lucros delas aumentam: revoluções coloridas, por exemplo, são bom negócio para elas.

LS: Duas perguntas pessoais, que deixei para o fim. Como você lida com o fato de que, de tempos em tempos, você é desmentido pelo governo dos EUA e tratado, pelos jornais, como maníaco de teorias conspiracionais? E como você lida com a tristeza, o desencanto que, com certeza acompanha todos os seus livros e toda a sua obra. Quero dizer: leio o que você escreve e, sempre, depois da leitura, mergulho em depressão profunda. Queria saber… Acontece também com você, afinal, você é quem investiga, descobre e escreve aquelas coisas. Você é o homem que tem de enfrentar a verdade. Como você lida com ela?

PDS: Bem… Acabei por aprender a esperar cada vez menos, durante a minha existência. Sou… pode me chamar, sim, de teórico de teorias conspiracionais, porque, para mim, é como um título de honra. Não sei se você já percebeu, mas estou posto na mesma categoria do pessoal que pesquisa seres extraterrestres e abduções e coisa e tal. Para mim, é o meio que encontraram de não ter de argumentar sobre o que eu estou realmente investigando, descobrindo e publicando. Recebo a reação deles como uma espécie de homenagem ao contrário.

Não sei se compreendi bem a sua pergunta, mas se você perguntou como lido psicologicamente com o fato de não ser ouvido… Às vezes, na minha vida, foi muito difícil. De fato, lá por 1980, estava com um livro pronto para publicar, primeira edição de 250 mil cópias, já em impressão, sobre o assassinato de Kennedy. E meu editor cancelou a publicação; para mim foi horrível, caí numa espécie de depressão. Mas foi das melhores coisas que me aconteceram, porque daquela depressão comecei a escrever um poema-livro intitulado Coming to Jakarta – que lida com a depressão e lida com o terror e lida com questões que estavam realmente me atormentando. O outro livro, que não foi publicado, não tem, nem de longe, a mesma importância, para mim, que Coming to Jakarta, que resultou do cancelamento do outro livro. Recebi a coisa toda como um golpe de sorte.

Vivo hoje um segundo casamento bem-sucedido, e me sinto amparado por pessoas como você, Lars, na Alemanha, e conheço também alguém que vive atualmente em Moscou; e tenho meu tradutor francês (Maxime Chaix). Todos são pessoas maravilhosas, e é um grande privilégio conhecer e trabalhar com vocês. E, porque sempre acreditei que a tarefa da minha geração seria lançar as bases do que um dia será uma opinião pública global, uma sociedade civil global, e acho que já começou a acontecer, nunca mais me senti deprimido.

É tudo ainda muito frágil, porque depende da Internet e a Internet é “brinde” que, assim como nos foi dada pode nos ser tomada pelo poder, e bem facilmente, e várias vezes é. Minha página em Facebook foi cancelada, num certo momento, não sei por quê, talvez até acidentalmente, porque estavam tentando pegar outra pessoa. Quero dizer: é tudo muito frágil, mas está funcionando. Pode ser suprimida… mas, qualquer coisa pode ser suprimida.

Creio firmemente na bondade essencial dos seres humanos e também creio que sempre houve governos péssimos, desde o começo do mundo, o que nos fez regredir várias vezes… É verdade, sim, que fizemos alguns progressos em alguns pontos, mas fizemos o oposto de qualquer progresso em outros aspectos, porque, hoje, os riscos de a humanidade se autodestruir são maiores do que eram há cem anos. Nisso, não houve progresso algum. Em meus livros de poemas costumo escrever que sou rematado idiota por insistir em escrever sobre política. Muitas vezes sinto-me como rematado idiota. Mas gosto do que faço, gosto de conversar com você. E vou levando.

Nota de rodapé

[1] Dana PRIEST e William ARKIN: Top Secret America: The Rise of the New American Security State, Little Brown, New York, 2011, p. 52.

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[*] Peter Dale Scott (nascido em 11/1/1929) é um poeta canadense, ex-diplomata e ex-professor de Inglês na University of California, Berkeley. É ácido crítico da política externa americana desde a época da Guerra do Vietnã. Scott foi um dos signatários, em 1968, do “Writers and Editors War Tax Protest”, no qual os participantes juraram recusar o pagamento de impostos, em protesto contra a Guerra do Vietnã. Passou quatro anos (1957-1961) no serviço diplomático canadense. Aposentou-se do corpo docente da UC Berkeley, em 1994.

Scott tem escrito sobre o papel do “Estado Profundo” (em oposição ao “Estado Público”) dos EUA rejeitando o rótulo de “Teoria da conspiração”. Usou a expressão “Política Profunda” para descrever suas preocupações políticas. Seu interesse pela história contemporânea transbordou em suas obras de poesia, algumas das quais contém notas marginais para explicar aos leitores que documentos ou eventos de notícias do mundo real estão sendo mencionados. Seu livro, The Road to 9/11 (2007), trata de contexto geopolítico de eventos que levam a 11/09, e argumenta que “como a política externa dos EUA desde a década de 1960 levou a encobrimentos parciais ou totais das infrações penais nacionais anteriores, incluindo, talvez, a catástrofe de 9/11”. Seus livros The Road to 9/11 e American War Machineestão disponíveis em francês sob os títulos La Route le Nouveau Désordre Mondial e La Machine de Guerre Américaine. Seus livros foram traduzidos para o francês, alemão, italiano, espanhol, russo e indonésio. Seus artigos foram traduzidos para 16 idiomas, incluindo o turco, árabe, persa, chinês e japonês.

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[*] Lars Schall é um jornalista alemão independente, especializado em Finanças e está na sua pauta a dimensão financeira das atividades da Agência de Segurança Nacional dos EUA e seus cúmplices bem como as implicações dessa espionagem nas negociações internacionais e as habilidades técnicas e tecnológicas colocadas à disposição das agências de inteligência. Particularmente discute a nazi-fascistização dos EUA. 

Fonte:  Rede Castor

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Para velhos jornais, crime de sonegação não é notícia

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Por que a mídia dá tão pouco destaque à Operação Zelotes, que flagrou fraudes fiscais de mega-empresas? Que interesses levam editores, em certos casos, a não cobrar Judiciário?

Por Luís Humberto Rocha Carrijo, editor do Rapport Comunica

O escândalo do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais — Carf –, que pode superar 19 bilhões de reais, recebe uma cobertura muito acanhada da imprensa brasileira, apesar de sua magnitude e implicações de toda ordem. Dentro do ponto de vista jornalístico, não há nada que justifique um tratamento tão desinteressado e desatento por parte das redações. Ao contrário, os vultosos desvios de recursos da Receita, com a participação de personagens graúdos do PIB nacional (bancos e empresas, boa parte, grandes anunciantes), fundamentam os princípios do que é notícia, pelo menos em veículos que praticam jornalismo em sua mais ampla definição — corajoso e isento, dedicado a informar a população.

Inúmeros fatos novos, que merecem uma investigação jornalística profunda, recebem, ao contrário, coberturas episódicas. A imprensa ignora que há o risco de a investigação não chegar a um resultado efetivo. Em operações de caráter semelhante, essa fase já teria resultado em prisões preventivas, por exemplo. A mídia ignora também a inexplicável morosidade do Poder Judiciário, que não autoriza medidas invasivas, a fim de levantar provas contra a corrupção. Dentro dos critérios puramente jornalísticos e de interesse da sociedade, o que diferem os escândalos de corrupção envolvendo políticos, como a Operação Lava Jato, daqueles que atingem apenas empresas, como a Operação Zelotes?

A literatura de comunicação de massa é pródiga em episódios que mostram a imprensa interferindo até em resultados judiciais. Do outro lado da moeda, outros atores atuam com a intenção de esvaziar o “buzz” dos eventos. Há casos de a administração pública agir privando as redações de conteúdo sobre fatos, até levá-los ao esquecimento com a inanição de dados e novidades. No Brasil, é a ausência deliberada de notícias sobre certos temas, como sobre crimes tributários, que leva à inação da Justiça e à consequente impunidade dos envolvidos. Como não é incomodado pela imprensa, o Judiciário continua pouco comovido com o bilionário prejuízo causado por grandes empresas aos cofres públicos. A imprensa, com essa atitude, torna-se cúmplice e comete uma fraude contra sua audiência, tomando empresado a frase do proeminente jornalista Peter Oborne sobre a postura do Daily Telegraph em relação à cobertura noticiosa do Swissleaks.

Enquanto na Suécia os jornais colocam a ética até mesmo acima das leis, no Brasil seus pares usam seu poder seletivo para cobrir fatos conforme interesses políticos e financeiros. A imprensa brasileira, nesse sentido, continua primitiva e longe dos ideais do que seja uma mídia livre e imparcial. O grave é que os veículos passam ao público a percepção de que são fiscais da sociedade, preocupados com o bem-estar e a lisura. Um ato sofisticado de cinismo.

As redes sociais ainda estão longe de ter a força e a influência para mobilizar a sociedade em torno de assuntos áridos. A ação conjunta e contínua de veículos alternativos e blogs de contestação mostra-se, por enquanto, incapaz de provocar uma reação popular e em rede em condições de mudar o estado das coisas. A população reage na medida proporcional em que é vítima direta, aguda, constante, objetiva e simplificada da opressão e da carência. As pessoas, no Brasil, pobres de educação política e leitura, não conseguem fazer conexões tão distantes e complexas.Ou seja, se não está na grande imprensa, é como se não existisse.

Por também serem “invisíveis” para a imprensa, sofrem do descaso público as parcelas mais vulneráveis da sociedade, que saem às ruas em movimentos reivindicatórios por acesso aos bens sociais. Mas como as mobilizações se dão na periferia, longe dos olhos da classe média e da elite, elas são ignoradas pela imprensa, deixando o Estado em situação confortável para manter seu desprezo pelas camadas populares.

Fonte: Outras Palavras

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Depois de alguns anos de hibernação, a retomada neoliberal

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Depois de autorizar entrada de dinheiro estrangeiro na saúde e a formação de oligopólios no ensino privado, Legislativo tenta, com a lei da terceirização, fazer o país andar para trás

por Marcio Pochmann*

Após sua hibernação por mais de uma década, o neoliberalismo vem registrando sinais recentes de seu reaparecimento. Para ser introduzido ainda no início dos anos 1990, durante a passagem do governo Sarney para o de Collor de Mello, o neoliberalismo contou com três condições fundamentais. A primeira, provocada pela recessão econômica no início da década de 1990, que buscou enfraquecer seus opositores, como os sindicatos, diante da inexorável elevação do desemprego e da redução no poder aquisitivo dos salários.

A segunda condição foi revelada pelos constrangimentos impostos pela revisão do papel do Estado através das transferências de funções públicas ao setor privado viabilizadas pela privatização de empresas estatais e corte generalizado no gasto público. A terceira condição ocorreu constituída pela implementação de várias medidas de flexibilização das regras nas áreas financeira, comercial, produtiva e trabalhista.

Essas três condições estruturadoras do neoliberalismo dos anos 1990 no Brasil encontram-se, guardada a devida proporção, retomadas no período recente, o que pode contribuir, ao que parece, para a reversão da posição governamental que até então se movia majoritariamente contrária. Inicialmente, pelo reaparecimento de um novo quadro recessivo, capaz de alterar a trajetória positiva de elevação no nível de emprego e de ampliação salarial. Na sequên­cia, a abertura para o crescimento da presença do setor privado em paralelo à contenção do Estado em ­algumas atividades.

Exemplo disso pode ser observado pela aprovação da legislação que incentiva a entrada de capital estrangeiro na saúde, responsável, até o momento, pela aquisição de quase meia centena de hospitais no país. Um movimento comparável localiza-se também na educação, com o estabelecimento de oligopólios privados no ensino superior e participação importante do capital estrangeiro. A contenção no gasto público em todos os níveis imposta pela retomada do programa de austeridade fiscal permanente, assim como a possibilidade de haver novas rodadas de concessões no serviço público, pode apontar para uma nova fase de apequenamento do Estado no Brasil.

Por fim, o atual vigor legislativo expresso pelo rápido avanço da pauta patronal e antilaboral estabelecida pela condução de votações sobre a terceirização e o Simples trabalhista. De um lado, o projeto de lei da terceirização tal como apresentado poderá representar o rebaixamento das condições de trabalho e remuneração dos empregados não terceirizados ao precarizado já vigente entre os terceirizados.

Em síntese, o trabalhador terceirizado no Brasil recebe remuneração que equivale, em média, à metade da percebida pelo empregado não terceirizado. Além disso, a rotatividade do terceirizado é duas vezes maior que a do empregado não terceirizado. De outro lado, o encaminhamento das proposições estabelecidas em torno do projeto do Simples trabalhista poderá permitir redução sensível na proteção que o empregado assalariado possui por meio da Consolidação das Leis do Trabalho. Ou seja, a maior e mais profunda reforma neoliberal do trabalho que o Brasil conhecerá.

* – Marcio Pochmann é professor do IE-Unicamp e membro do Cesit

Fonte: Cesit

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